Atenção básica vê ‘terceira onda’ de doentes atingindo o sistema de saúde

Agentes de saúde pública em várias regiões do Brasil alertam para uma “terceira onda” que vai se sobrepor aos dois maiores problemas já enfrentados pelo sistema: o aumento dos pacientes graves pela Covid-19 e a falta de pessoal e de equipamentos de segurança —que atinge a maior parte dos profissionais.

Com milhões de consultas e cirurgias canceladas devido ao coronavírus, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), com 47,7 mil equipes no país, prevê novo estresse no sistema nas próximas semanas diante da falta de acompanhamento de pacientes crônicos, sobretudo de hipertensos/cardíacos e dos diabéticos.

Essas doenças, que atingem até 40% e 20% da população, respectivamente, são duas das principais comorbidades associadas às mortes pela Covid-19. Sozinhas, elas já estão no topo das principais causas de óbitos no país.

“Uma coisa é deixar pacientes 15 dias sem acompanhamento. Outra é um ou dois meses”, afirma Rita Borret, presidente da Associação de Medicina de Família e Comunidade do Rio de Janeiro.

Afastada do trabalho por suspeita de infecção pelo coronavírus, Borret afirma que as consultas normais em muitas unidades de saúde cariocas foram “destruídas a zero”, e que o município tem falhado em equipar os postos com celulares para que os profissionais possam tentar realizar atendimentos à distância.

“Na epidemia, os agentes comunitários também não estão conseguindo mais circular tanto nas comunidades, perdendo o acompanhamento de casos crônicos”, diz.

Segundo ela, apenas casos de pré-natal, tuberculose e hanseníase têm sido atendidos com mais frequência.

Em Uberlândia (MG), a médica Natália Madureira, responsável por um público de 5.000 pessoas em uma unidade básica, afirma que a prioridade no atendimento aos casos da Covid-19 vem produzindo interrupções em muitas unidades por falta de pessoal e equipamentos de segurança.

Pouco antes de falar com a Folha, Madureira havia mandado para casa um paciente com transtorno bipolar, em pleno surto psicótico, que há dias não consegue atendimento em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) na cidade.

“O funcionamento das unidades depende da estrutura, mas quase tudo o que não for demanda urgente está sendo fechado ou direcionado para a Covid-19”, diz ela.

No Recife, o médico Bruno Pessoa relatou ao menos três casos de pacientes graves, sem o coronavírus, que não puderam dar continuidade a tratamentos ou à investigação de problemas em sua unidade de saúde, que atende cerca de 4.000 pessoas.

Em um deles, uma paciente com a tiroide muito aumentada não consegue exame endocrinológico e corre o risco iminente de ter a pressão arterial elevada exponencialmente. Ela já perdeu 7 kg e não dorme direito há uma semana.

Outra paciente, com tuberculose, não tem acesso a um infectologista para avaliar a medicação necessária.

“O sistema já era congestionado antes, com filas de meses para atendimento. Com a Covid, muitos casos graves são mandados para casa”, diz.

Segundo Pessoa, os kits de testes disponíveis para coronavírus na capital pernambucana ainda não atendem nem a metade da demanda.

Uma das saídas buscadas em algumas cidades e estados é a adoção de “duas portas” no sistema: uma para a Covid-19 e a outra para voltar a atender pacientes crônicos. Isso, no entanto, nem sempre tem sido possível devido à falta de pessoal e estrutura.

Segundo Denize Ornellas, diretora de Comunicação da SBMFC, as equipes nos hospitais já trabalhavam no limite antes da epidemia, o que limita a possibilidade de divisão do pessoal. Agora, muitos também estão adoecendo no trabalho.

Em muitos estados, as equipes têm tentado ampliar os atendimentos via redes sociais e aplicativos de vídeo, o que nem sempre ocorre devido à limitação do acesso a telefones e internet ou pela falta de familiaridade dos pacientes com esses meios.

Outra dificuldade é que os próprios doentes crônicos, sobretudo os mais velhos, têm evitado procurar as unidades de saúde temendo ser contaminados pelo coronavírus.

Segundo o médico Rodrigo Lima, do Distrito Federal, enquanto as consultas em sua unidade de saúde foram cortadas a 20% do normal, mais da metade dos pacientes que buscavam atendimento no dia a dia desapareceram.

“Diabéticos e hipertensos sem ajustes na medicação são uma espécie de bola de neve para o sistema”, diz Lima.

Além dessa preocupação, os agentes seguem relatando enorme subnotificação de casos prováveis de Covid-19.

Nem todos os estados e municípios informam ao Ministério da Saúde os casos da chamada SG (Síndrome Gripal), que, além de febre, incluem mais um sintoma, como tosse —e não há testes para confirmar se é Covid-19. Assim, só comunicam as chamadas SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), geralmente relacionadas ao coronavírus.

Além da falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) e dos atrasos na chegada de kits para testes, há relatos de que a divulgação de seus resultados, quando existem, chegam a demorar quase três semanas.

Na unidade de Rodrigo Lima em Brasília, que atende 25 mil pessoas com outras equipes, chegaram até agora apenas dois kits para testes.

Na segunda (21), o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), anunciou que o plano é retomar a maior parte das atividades econômicas até 4 de maio.

Apesar da redução das consultas em ambulatórios, em estados onde o número de infectados é menor e o sistema ainda tem folga nas UTIs, há um esforço para manter o acompanhamento de doentes crônicos.

“Pacientes com câncer, doenças cardíacas, diabetes e mesmo problemas ortopédicos têm sido atendidos”, diz Sandro Rodrigues, chefe da Superintendência de Atenção Integral à Saúde de Goiás.

No estado, a orientação é que tenha início em breve o chamado “retorno responsável” do comércio.

Em Florianópolis, que já vem retomando várias atividades, os atendimentos de pacientes sem coronavírus estão praticamente normais, segundo a médica Livia Hinz Caliço, que atende cerca de 15 mil pessoas em quatro equipes localizadas na parte continental do município.

“Santa Catarina começou cedo o isolamento, em 16 de março, e não tem problemas de falta de leitos de UTIs. Vamos ver o que acontece agora que as coisas estão voltando a funcionar”, afirma.

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