O Brasil tem ao menos 23,6 mil testes do novo coronavírus (Sars-CoV-2) ainda à espera do resultado. Esse número equivale a 3,4 vezes o total de casos confirmados (6,9 mil) no balanço das Secretarias de Saúde, atualizado às 7h40 desta quinta-feira (2). Para especialistas ouvidos pelo G1, tal discrepância indica que pode haver muito mais gente com a doença Covid-19 no país.
Essa subnotificação de registros tem duas causas:
A falta de testagem maciça no Brasil; A demora para finalizar essas análises já iniciadas mas não concluídas.
Pesquisadores explicam que esse cenário – quantidade de kits insuficiente e gargalo na hora de analisar as amostras coletadas – dificulta a realização de cálculos que mostrem o real avanço do surto por aqui. E fazem um alerta: como o Ministério da Saúde recomenda que sejam testados apenas pacientes graves, existe a chance de ser considerável o percentual de “positivos” nesse universo de pessoas já submetidas ao exame.
O G1 procurou as Secretarias de Saúde de todos os Estados e do Distrito Federal para saber quantos testes estão na fila. Apenas dez responderam: Acre, Alagoas, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo (veja os números na tabela abaixo).
O RJ, segundo estado com mais casos e mais mortes, não informou os números até a última atualização desta reportagem.
Fila de testes
Estado nº de testes aguardando análise nº de casos confirmados:
Acre 68 43
Alagoas 100 18
Amapá 311 11
Ceará 1.840 445
Espírito Santo 674 120
Minas Gerais 3.856 314
Paraíba 100 21
Pernambuco 0 95
Rio Grande do Norte 1.000 92
São Paulo 16.000 2.981
Total 23.638 4.085
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou mais de dez tipos diferentes de testes para detectar o coronavírus. Eles podem levar de 15 minutos (com uma picada no dedo para tirar o sangue) ou até sete dias (com uma coleta de material do nariz e da faringe por meio de cotonete). Clique aqui para ler mais sobre os testes.
Modelos que projetam o volume de casos para os próximos dias sugerem que o ritmo da pandemia está mais lento — apesar do recorde de confirmações em um só dia (1.138) nesta terça-feira (31) e do acréscimo considerável (outros 1.119 casos) nesta quarta-feira (dia 1º), segundo o Ministério da Saúde.
Ao G1, pesquisadores de três grupos de monitoramento da pandemia no país — cada um com uma metodologia distinta — admitiram que a possível tendência de queda de contágio pode não retratar a realidade, tamanha a subnotificação.
“O número de casos notificados é muito afetado pela capacidade de processamento dos testes diagnósticos”, afirmou Roberto Kraenkel, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). “Como há represamento, poucos testes ficam prontos, e o número de casos fica artificialmente pequeno.”
O físico é integrante do Observatório Covid-19 BR, que reúne pesquisadores de outras seis instituições – Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade de Berkley (nos Estados Unidos) e Universidade de Oldenburg (na Alemanha).
Em São Paulo, por exemplo, a demanda de testes no Instituto Adolfo Lutz é o triplo da capacidade atual de análise. Nesta quarta, o instituto informou que 16 mil análises aguardavam resultados. Do total de exames recebidos na semana passada, apenas 0,4% foi processado e liberado.
Essa avaliação de que o número de casos deve ser significativamente maior é compartilhada por equipes do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), que agrega cinco instituições, e do MonitoraCovid-19, da Fiocruz.
Testes e subnotificação
Em entrevista coletiva nesta quarta, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou: “Prestem atenção que o número de casos confirmados – a partir desta semana, eles vão começar a ter um aumento. O que significa esse aumento? A testagem que está represada, (…) estamos começando a fazer algumas máquinas em automático, vai chegar um momento [em] que vamos ter megamáquinas automatizadas, e esses números vão crescer muito”.
Ele acrescentou: “O número de casos está muito menor que o número de casos [real] que está circulando dentro da nossa sociedade”. De acordo com o ministro, “provavelmente hoje a gente já estaria em espiral de casos mesmo fazendo esse isolamento [distanciamento social]”.
De acordo com o NOIS, a pandemia no Brasil evolui “de forma mais controlada” em comparação com uma “cesta de países” – China, Coreia do Sul, Irã, Alemanha, Itália, Espanha, França e Estados Unidos.
“No entanto, por mais que as medidas de contenção tenham sido tomadas logo no início da epidemia, o que se mostrou eficaz para outros países, não se pode atribuir o crescimento mais lento do Brasil exclusivamente a este fato”, ponderam os pesquisadores.
“Outros fatores podem estar contribuindo [para o ritmo mais lento de contágio no Brasil com relação a outros países], como as subnotificações e o baixo número de testes.”
Eles detalham: “Um exemplo da influência destes fatores pôde ser visto no dia 31 de março, quando o Brasil apresentou um aumento de 25% em comparação ao dia 30 de março, sendo que em São Paulo esse aumento foi de 54%”.
O tema da subnotificação foi abordado por Helio Gurovitz em seu blog no G1 nesta quarta: “faltam testes, mesmo para os casos graves”. “Todo número, portanto, não passa de uma ilusão”, escreveu.
Ritmo artificialmente lento no Brasil
Um dos dados extraídos pelo Observatório Covid-19 BR dos boletins diários do Ministério da Saúde indica o tempo de duplicação da pandemia no Brasil — ou seja, quanto tempo demora para duplicar o número de infectados.
Esse número, no entanto, deixou de ser divulgado pelo grupo — e um comunicado no site explica o porquê.
“No momento, não é possível estimar tempos de duplicação da epidemia, pois há um enorme acúmulo de testes moleculares sem resultados. Essa demora faz com que os números disponíveis publicamente cresçam de maneira artificialmente lenta”, afirmam os pesquisadores no comunicado.
“A evolução dos números oficiais informa hoje sobre a dinâmica de notificação, não da epidemia. Seria irresponsável seguir divulgando medidas de propagação da epidemia no Brasil com esses números”, concluem.
Uma reportagem do G1 mostrou que, em 20 de março, o volume de contaminados no país dobrava a cada dois dias. Nesta segunda-feira (28), esse tempo chegou a uma semana, segundo o Observatório.
Mas o físico Roberto Kraenkel, da Unesp, faz uma ressalva: o freio também pode estar relacionado às medidas restritivas.
“A curva do tempo de duplicação é pouco informativa neste momento. Há demora de notificações, por um lado, e medidas de afastamento social já há uma semana. Ninguém ainda sabe qual é mais importante para o tempo de duplicação de casos confirmados”, pontuou o pesquisador.
Taxa de contágio ficou mais lenta, diz Fiocruz
De acordo com o estudo do MonitoraCovid-19, a taxa de duplicação subiu no Brasil de 2,8 dias para 4,7 dias entre segunda e terça.
“Nós utilizamos um modelo exponencial para este cálculo, truncando os dados até a data da maior incidência. A queda do número de casos após esta data no Brasil pode estar mais relacionada a uma menor disponibilidade de testes do que a uma queda efetiva do número de infectados”, explicou Raphael Saldanha, cientista de dados da Fiocruz, sobre a taxa divulgada na terça.
Diogo Xavier, que também é um dos responsáveis pelo projeto, diz que por ora o grupo está monitorando a tendência de queda na curva de novos casos de Covid-19, mas as informações disponibilizadas apontam um modelo de crescimento.
Segundo ele, ainda está sendo criado um “indicador que aponte a variação dos dias para dobrar casos e óbitos diariamente”.