Em Manaus, UPAs precisam funcionar como UTIs e enfermeiros dizem escolher entre quem respira ou não

A rede pública de saúde no estado onde corpos foram deixados ao lado de pacientes – a imagem mais reveladora, até agora, dos impactos da pandemia no país – tem Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) obrigadas a oferecer assistência equivalente à de uma UTI, por saturação dos leitos de terapia intensiva; falta de equipamentos básicos para garantir a respiração dos pacientes; falta de máscaras tanto para as equipes de enfermagem quanto para pacientes com tosse intensa; reutilização de aventais que deveriam ser descartados; inexistência de testagem para os profissionais de saúde; e famílias isoladas de qualquer notícia sobre pacientes em estado grave, diante da alta demanda por atendimento. Os relatos foram feitos ao GLOBO por quatro enfermeiros que estão na linha de frente em Manaus, ouvidos sob a condição de anonimato.

O Amazonas vive uma situação de “emergência”, assim como outros seis estados, segundo classificação do Ministério da Saúde. De acordo com o governo local, quase 90% dos leitos de UTI estão ocupados, numa demanda que ultrapassou a capacidade do hospital de referência para atendimento de pacientes com Covid-19, o Delphina Aziz. Foi necessário recorrer a outros hospitais, como o João Lúcio, que colapsou diante da grande quantidade de infectados pelo novo coronavírus. Amazonas tem a segunda maior incidência de infectados no país, com 415 diagnosticados por 1 milhão de habitantes.

‘A gente já vive um colapso’

Os problemas decorrentes da sobrecarga perpassam as mais diferentes unidades de saúde, das UPAs às UTIs de hospitais destinados a pacientes com Covid-19. Segundo um enfermeiro que trabalha numa UPA, a unidade está sendo obrigada a fazer as vezes de uma UTI:

– O paciente fica esperando uma vaga numa UTI. Não há como mandar mais para hospital de referência. Assim, assumimos o paciente e fazemos a terapia intensiva. Todas as unidades de média complexidade estão tendo de assumir os pacientes críticos, até que se abram vagas. No meu último plantão, recebemos nove pacientes. A gente já vive um colapso.

Segundo uma enfermeira que trabalha no João Lúcio, onde câmaras frigoríficas foram providenciadas depois da revelação das cenas de pessoas mortas ao lado de pacientes, não há pessoal suficiente para o atendimento necessário:

– Na sala onde trabalho, são necessários cinco técnicos de enfermagem. Tem só um. Quando muito, dois.

Exames demoram um dia inteiro para serem providenciados, segundo a enfermeira. Não há máscaras de proteção para os pacientes. Aventais que deveriam ser descartáveis são esterilizado para serem reusados. O uso de uma única máscara N-95 é recomendado para 15, 20 e até 30 dias. O isolamento dos familiares, que não conseguem notícias dos parentes internados, é outra realidade no João Lúcio.

– A demanda está tão grande que o SOS Funeral, destinado a pessoas pobres, não tem condições de recolher todos os corpos. Como as famílias não têm condições financeiras de providenciar a retirada dos corpos, eles acabaram paralisados ali, ao lado de pacientes – afirma a enfermeira.

Uma outra enfermeira diz conhecer 12 colegas da enfermagem que foram infectadas pelo novo coronavírus. Ela diz que os profissionais não conseguem fazer o teste para detectar se têm Covid-19.

 Sabemos que estamos em uma guerra. O problema é estar em guerra sem nenhuma arma. A gente não tem equipamento de proteção individual. Se aparece algum EPI, é de material inferior – afirma.

Enfermeira teme contaminação

No Delphina Aziz, referência em Manaus para Covid-19, os leitos de UTI estão quase sempre ocupados. Novos espaços estão sendo providenciados em outro andar do hospital.

– É um paciente saindo e outro entrando. Agora vão abrir mais 56 leitos, será mais um andar com UTI. Só vai para UTI quem realmente precisa. E eu não quero nem pensar na possibilidade de ter de participar de uma escolha sobre quem vai ter e quem não vai ter um leito – diz uma enfermeira que atua na UTI no hospital.

Para ela, a morte virou algo cotidiano:

– Eu prefiro não somar quantos pacientes morreram nos meus plantões. Teve noite que foram cinco. Em outra, sete. É uma frustração, porque ninguém quer morrer, mas a gente tem nosso limite.

A enfermeira diz que no Delphina Aziz não ocorrem as cenas vistas no João Lúcio:

– Existe todo um processo para a remoção e preparação do corpo. Colocamos o corpo em dois sacos, para não haver risco de contaminação. É preciso ter um cuidado extra na hora de retirar os acessos periféricos, para que não respinguem os fluidos. Não há dificuldades de remoção dos corpos. O maqueiro aparece, leva para o necrotério e tem frigorífico lá. A maca que leva o corpo tem uma tampa, então ele fica bem armazenado, não fica exposto.

A enfermeira tem colegas internados por Covid-19. Um técnico de enfermagem está no Delphina Aziz e um enfermeiro, no João Lúcio.

– No começo, eu entrei em pânico com isso. Agora, eu peço a Deus que, se for para ser contaminada, que não seja de forma agressiva. Eu não quero ser mais uma vítima.

O governo do Amazonas diz que está providenciando tanto EPIs para os profissionais de saúde quanto mais leitos de UTI, além de reposição de profissionais por meio de convocações de concursados e abertura de novos processos seletivos. Os cinco hospitais da rede terão 1.023 leitos, conforme a Secretaria de Saúde. O Delphina Aziz, por exemplo, ativou 25 leitos de UTI e 20 leitos clínicos a mais, segundo a secretaria.

O novo coronavírus já resultou no afastamento de 376 profissionais de saúde, segundo o governo local. Ao todo, há 983 profissionais afastados por atestado médico. A Secretaria de Saúde reconhece que o afastamento desses profissionais e a limitação do número de leitos afeta o combate à Covid-19 no Amazonas. Por isso, serão convocados 517 profissionais aprovados em concursos antigos e novo processo seletivo vai contratar 704 técnicos de enfermagem, conforme a secretaria. Também houve reforço de 16 voluntários do programa “Brasil Conta Comigo”, do governo federal.

PUBLICIDADE