Assim que o isolamento social foi adotado no Acre como forma de conter a propagação do coronavírus, trabalhadores da cultura das mais variadas vertentes perderam suas fontes de renda. Músicos, atores, técnicos de som, cineclubistas, entre outros, tiveram de largar os palcos para fazer sua parte no enfrentamento da covid-19, que já infectou mais de 300 no estado.
No entanto, a ausência de trabalho cobra seu preço. Em mais de um mês sem sair de casa, muitos agentes culturais vêm passando necessidades e afirmam que ainda não viram o socorro por parte da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour (FEM), autarquia do governo do estado responsável pela gestão cultural em todo o território acreano.
Preocupados com a própria situação, quase 400 fazedores de cultura de Rio Branco e outras cidades assinaram um manifesto solicitando urgência na implementação de medidas para amenizar as dificuldades financeiras. Na lista estão artistas de circo, dançarinos, capoeiristas, pesquisadores, técnicos de iluminação de palco, ativistas culturais e outros.
Entre as políticas sugeridas está o pagamento de uma renda mínima, além de subsídios. “São artistas e toda a cadeia produtiva da cultura acreana que se encontram comprometidos e em situações de extrema vulnerabilidade. Este subsídio financeiro seria um aporte para que milhares não sofram ainda mais com as consequências da pandemia”, diz o manifesto.
“Tá ruim, mas vai piorar”
Antes da epidemia de covid-19, que já matou 14 pessoas no Acre, o artista Romualdo Freitas ganhava a vida com teatro de rua e de palco. Porém, sem povo nas ruas e com espaços culturais fechados por tempo indeterminado, teve de pendurar os figurinos. O profissional da arte complementava sua renda vendendo artesanato na feirinha do Novo Mercado Velho, que também encerrou as atividades até que a ameaça do coronovírus cesse.
“Nós, que trabalhamos com arte, principalmente com a arte que aglomera público, estamos passando por esse momento difícil. Estou há mais de um mês sem fonte de recurso. Agora mesmo o aluguel e a fatura do cartão de março foram pagos com as pequenas reservas que eu tinha. O final de abril se aproxima e não sei como vai ser a coisa, porque não tem entrado dinheiro. Só saído. O negócio está ruim e pelo visto tende a piorar”, lamenta Romualdo.
Ele ressalta que em momentos de emergência é que se faz necessária a reação imediata dos gestores públicos, o que não teria acontecido por parte da FEM, que, segundo o artista, começou a se mexer “muito tardiamente”. “É preciso que se consiga, com uma certa brevidade, uma forma de repassar para os artistas algum recurso para que a gente se garanta”, solicita.
Freitas esclarece que não se trata de simples doação de dinheiro aos fazedores de cultura. Ele cita como exemplo outros estados onde o poder público contratou e pagou de forma antecipada os artistas para se apresentarem em festivais a serem realizados somente após a pandemia de coronavírus, como forma de aliviar a situação financeira desses profissionais.
Lembrou também do projeto FestVida – Arte de Casa para o Mundo, criado pela prefeitura de Rio Branco no início do mês. A ação contemplou 50 artistas com R$ 1 mil reais cada para apresentação de seus trabalhos culturais nas ferramentas ao vivo das principais redes sociais.
O outro lado
Procurada pela reportagem, a FEM esclareceu que tem buscado ajudar o movimento cultural dentro de suas condições. A principal medida listada é, também, um edital de apoio para apresentações via internet. O projeto já foi encaminhado à Casa Civil, que, por sua vez, levou a proposta à Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag). Faltaria apenas a conclusão de procedimentos burocráticos, que seguem mesmo após mais de 40 dias de pandemia no Acre.
“O edital terá por objeto a seleção de projetos que apresentem propostas de conteúdos digitais para comporem a programação do Festival #ConectCultura, que objetiva publicizar, através de plataforma online, conteúdos de artes e cultura desenvolvidos por artistas e fazedores acreanos”, esclareceu o órgão, por meio de sua assessoria de imprensa.
O festival abordará temas ligados às artes, livro, leitura, literatura e patrimônios histórico e cultural. Além das performances, também há previsão de workshops online. Instituições sem fins lucrativos e de natureza cultural serão convidadas para organizarem toda a programação. “A nossa relação será com as entidades e a relação dos artistas deverá ser com essas entidades. É o que temos acordado até o momento”, explicou o órgão. O edital segue sem previsão.
A FEM garantiu ainda que tem entregado sacolões para grupos culturais. “Infelizmente, não conseguimos atender a todos e foram priorizados os que não têm nenhuma outra fonte de renda”, informou a instituição, presidida atualmente pelo Manoel Pedro, o Correinha.
Questionamentos
De acordo com o artista e produtor cultural Lenine Alencar, o formato do edital, com base no que foi divulgado até agora, vem sendo “bastante questionado” porque muita gente não está representada pelas instituições culturais que farão a ponte entre governo e artistas.
“Como as entidades vão se estruturar para administrar isso se elas estão de portas fechadas? Parte do recurso vai ser utilizado para a gestão dos projetos junto a essas entidades? Penso que elas precisam fazer uma articulação administrativa, ter uma equipe que consiga dar andamento a essas questões”, questiona o também presidente da Federação de Teatro do Acre (Fetac).
Para ele, o mais importante era que o edital trabalhasse com recursos que chegassem diretamente aos artistas. “As entidades não têm pernas pra poder fazer isso e incluir as pessoas dos municípios. A fundação já têm uma estrutura de gestão e teria esse contato direto”, propõe.
Romualdo Freitas segue o mesmo pensamento. Ele acredita que o modelo tende a excluir artistas que não estão ligados a instituições. “As entidades nos representam, claro. Mas estar filiado a uma entidade representativa de classe não é obrigatoriedade para que você seja artista. A gente sabe que nem todas as pessoas do interior possuem filiação”, argumenta.
Sobre as cestas básicas doadas a fazedores de cultura mais vulneráveis, ação realizada tanto pela gestão estadual quanto pela Fundação Garibaldi Brasil (FGB), em Rio Branco, Freitas comenta que os produtos acabam com o passar dos dias e a fome continua.
O ideal, para ele, é que as ações de socorro “tenha uma determinada constância até enquanto durar esse isolamento. Tivemos agora o edital da FGB, que é pouco recurso pra muita gente, mas era o que tinha na hora. É certo que mil reais é uma mão na roda grande pra quem está precisando agora. Mas daqui a um mês os mil reais já foram. Ninguém consegue adiar a fome e os compromissos. Há que se pagar água, luz, aluguel, gás e outras coisas essenciais”.
E sobre a FEM, continua: “A gente sabe que não tem como alocar recursos com tanta rapidez, mas a coisa está muito demorada. Talvez nesse ritmo, a gente só vai conseguir lá pra maio. E lá pra maio a gente não tem como segurar tanto as nossas necessidades”.