Para os exploradores Emmanuelle e Ghislain Bardout, o fundo do mar é o limite — e, em tempos de pandemia, o lugar mais seguro do planeta.
Esse casal francês é responsável pela criação de uma cápsula de mergulho que permite que eles fiquem submersos por até três dias seguidos sem voltar à superfície.
Assim como compara o próprio pai da engenhoca, que levou cerca de três anos para ficar pronta, é como poder acompanhar a vida selvagem de uma floresta por um longo tempo, mas debaixo d’água. A técnica não só evita as longas sessões de descompressão pós-mergulhos profundos, mas permite também acompanhar a vida marinha de perto ao longo de 72 horas ininterruptas.
Como eles mesmos se descreveram em um post de final de temporadas:
Por um tempo, não éramos apenas mergulhadores, mas parte de um recife”
Desde 2017, a expedição Under The Pole III navega entre o Ártico e a Antártica, onde os Bardout já fizeram cerca de 500 mergulhos científicos em águas extremamente geladas e a mais de 100 metros de profundidade.
Ghislain é engenheiro de energia e mergulhador de águas profundas, e Emmanuelle Périé é skipper especializada em áreas polares.
Há uma década em viagens a bordo de uma escuna polar, o casal encabeça o Under the Pole (‘Debaixo do polo’, em tradução livre), um projeto que coleta e divulga dados científicos em áreas como aquecimento global, biologia marinha e fisiologia do mergulho.
Com estudos do ambiente subaquático a profundidades de até 150 metros, um dos objetivos da expedição é encontrar novas técnicas de imersões humanas mais prolongadas.
Quanto mais fundo vamos, mais estamos em outro planeta”Ghislain Bardout
E se você achava que certas viagens não são feitas para crianças, o casal viaja acompanhado dos dois filhos pequenos e da mascote Kayak, um husky siberiano de 11 anos.
Como funciona
Com capacidade para até três mergulhadores, a cápsula pesa 90 quilos e tem pouco mais de três metros de comprimento e 1,5 metro de altura.
A casa marinha temporária fica presa por cabos a dois outros tanques que funcionam como pesos no fundo do mar. Em seu interior, é bombeada uma mistura de gases (40% de oxigênio e o restante de gás hélio).
O acesso é por uma escotilha que fica embaixo da cápsula, que não é invadida pela água pois seu interior e o exterior têm a mesma pressão. Em outras palavras, é um ambiente seco debaixo d’água.
Suas expedições já contaram com a participação de 150 tripulantes e 130 institutos de pesquisa e empresas parceiras.
“Estamos ultrapassando os limites porque não contamos mais mergulhos em horas, mas em dias”Ghislain Bardout
Viagens congelantes
Assim como lembram os idealizadores da expedição, cerca de 90% dos oceanos ainda são territórios desconhecidos pelo ser humano.
Mas Ghislain e Emmanuelle não se contentam com as águas mornas da Polinésia Francesa, arquipélago isolado no Pacífico onde a cápsula costuma ficar quando não está em atividade.
Não são mais apenas peixes no aquário. Somos nós”Emmanuelle Périé
E não é de hoje que o casal tem olhos voltados para o fundo do mar. A primeira expedição foi em 2010, quando realizaram 52 mergulhos no Ártico, ao longo de 45 dias.
Com equipamento adaptado para áreas de baixa temperatura, a tripulação trazia à superfície não só um novo olhar sobre o mundo submarino das calotas polares, mas também dados científicos da espessura da neve na região e da fisiologia humana em áreas de condições extremas.
Entre 2014 e 2015, os Bardout partiram em sua segunda expedição a bordo da escuna WHY, em direção à Groenlândia.
Como nos tempos das navegações históricas nos extremos do planeta, a viagem começou em Concarneau, na França, passando por destinos isolados do Atlântico Norte como as Ilhas Faroé, Islândia e o Cabo Farvel, o ponto mais ao sul da Groenlândia.
Aquela seria a primeira vez que mergulhos polares ultrapassariam os 100 metros de profundidade e com mais de duas horas de duração. Em 21 meses, foram 300 submersões ao longo da costa oeste da maior ilha do mundo.
Após uma navegação de 10 mil quilômetros, a expedição Under The Pole II seria impedida de seguir viagem por conta do gelo no Estreito de Nares, entre a Groenlândia e o Canadá.
No melhor estilo Ernest Shackleton de encarar travessias polares, mas dessa vez com tecnologia avançada, a tripulação passou cinco meses detida entre aqueles imensos blocos de gelo.
Antes de mergulhar a mais de cem metros de profundidade, em buracos estreitos feitos em banquisas, foram recebidos pelos simpáticos inuítes, fizeram deslocamentos em trenós puxados por cachorros e jogaram futebol no gelo.