Maria da Penha: fundamentos jurídicos nos casos de mulheres transexuais e travestis

*Por Charles Brasil, Advogado e Professor. Coautor do livro “Intersexo”; organizador e coautor do livro “O direito à diferença: contribuições para uma análise crítica do direito”

Vamos falar de violência contra as mulheres transexuais e travestis? Ou o Direito não as consideram sujeitas a proteção do ordenamento especial? É cruel, desumano e moralmente inaceitável a violência doméstica ou familiar perpetrada, diariamente, contra a pessoa do gênero feminino.

A Lei Maria da Penha (LMP) é um marco divisor de águas para o combate dessa violência. Nesse sentido, o referido marco legal preceitua que toda mulher, independente da sua orientação sexual, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (art.2 LMP).

A definição de violência doméstica e familiar é qualquer ação ou omissão baseado no gênero mulher que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (art.5 LMP). Mas, então, o que seria gênero? Em uma definição simples podemos dizer que o gênero corresponde ao sexo de nascimento da pessoa (temos também os gêneros indefinidos, como as pessoas intersexuais).

Mas, então, o que seria orientação sexual? Em síntese, pode-se dizer que se trata de um dos aspectos que envolve a sexualidade humana podendo ser definida como a atração que se sente por outros indivíduos (sentimentos, afetividade, não necessariamente sexo). Essa afetividade proporcionada pela orientação sexual pode ser exercida por diversas formas.

Assim, se a LMP definiu que toda violência doméstica ou familiar baseada no gênero mulher, independente da orientação sexual, as mulheres transexuais e travestis quando vítimas desse crime merecem proteção de seus direitos fundamentais, entre eles o direito à vida, bem como as medidas protetivas consagradas no citado marco legal.

No Acre, em 2017, um caso emblemático de violência doméstica teve uma repercussão nacional e se tornou importante para a garantia de direitos. O casal mantinha um relacionamento estável, público e notório de oito meses que chegou ao fim após as agressões contra a vítima, uma mulher transexual. Após quase ter sua vida ceifado, Rubby Rodrigues não teve as medidas protetivas deferidas pela delegacia de proteção a mulher de Rio Branco, pois o entendimento daquele setor policial era de que não se tratava de aplicabilidade da LMP.

Não coube outra saída se não ingressar com uma ação na vara de proteção a mulher do Tribunal de Justiça do Estado do Acre (TJAC) requerendo as medidas protetivas da LMP para Rubby Rodrigues, vítima de violência doméstica, sob o argumento, entre outros, de que os aspectos biológicos não podem definir o gênero, nem a identidade sexual de uma pessoa. No caso citado, tratava-se de uma pessoa que biologicamente foi definida compulsoriamente pelo gênero masculino, no entanto, na sua identidade social e psicológica a definição se dava para o gênero feminino.

Aqui se encontra o fundamento jurídico conforme preceitua a LMP ao definir a violência doméstica e familiar como sendo aquela perpetrada contra o gênero mulher, independente da orientação sexual. Logo, as transexuais e travestis que se identificam social e, ou, psicologicamente com o gênero feminino pode ser enquadrada como vítima de violência doméstica ou familiar.

Sobre a decisão inédita, o magistrado Danniel Bomfin deixou claro que o gênero biológico não deve servir de obstáculos ao reconhecimento da identidade sexual feminina da vítima e, portanto, merece proteção da Lei Maria da Penha. Ainda segundo o magistrado, cabe o Poder Judiciário não só assegurar a proteção efetiva, mas também a própria coexistência pacífica das diferenças. Eis o grande desafio das Repúblicas Democráticas e plurais: garantir a convivência pacífica dos diferentes. Nesse caso, a jurisdição acreana garantiu.

Após o pedido do advogado de Rubby Rodrigues, o magistrado deferiu as medidas protetivas e inaugurou um novo momento de mudanças para a proteção e garantia de direitos humanos e fundamentais para as mulheres transexuais e travestis vítimas de violência doméstica e familiar no Brasil[1].

Por fim, sexualidade e direito são áreas do conhecimento que precisam dialogar cada vez mais. Cabe ao direito respeitar as diversas formas de convivência e expressão da sexualidade humana, mesmo quando a moralidade da maioria diz o contrário. A fundamentação jurídica para essa afirmação é a base de uma convivência harmoniosa em uma sociedade democrática. E por democracia, entende-se, dentre outras questões, a inclusão, o respeito e a efetividade de garantias e direitos fundamentais de minorias políticas. #MulheresTrans. #MulheresTravestis. #Respeito.

Até o próximo papo sobre direito e diversidade!

Confira nossa Coluna “Por dentro dos seus direitos” todas as terças-feiras aqui no ContilNet com Samarah Motta.

[1] Este caso foi relatado no livro “o direito a diferença: contribuições para uma análise crítica do direito” lançado em junho de 2020 pela editora da Universidade Federal do Acre, a Edufac. Os fundamentos jurídicos desse caso foram apresentados em um artigo, em 2016, na cidade de São Paulo, no II Congresso Internacional e VI Congresso Nacional de Direito Homoafetivo promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de São Paulo.

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