SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pernalonga faz 80 anos. Mas é impossível dizer que o coelho símbolo dos estúdios Warner tenha amadurecido nesse tempo. Em “The Wild Hare”, sua animação de estreia lançada nas matinês dos cinemas americanos em 27 de julho de 1940, ele já nasceu com a personalidade espertalhona imutável que o consagrou.
Quando se fala em personagens de desenho animado, ele só é comparável ao Mickey de Walt Disney. Mas Pernalonga estrelou um número maior de filmes no cinema, mais de 200.
Bugs Bunny, seu nome original, passou a vida sem que a Warner desse um veredito sobre ele ser um coelho (“rabbit” ou “bunny”, em inglês) ou uma lebre (“hare”), alternando as nomenclaturas em roteiros.
Como vários heróis de animação da Warner, Pernalonga surgiu de criação coletiva. Um coelho frequentou muitos curtas do estúdio entre 1936 e 1939, mas a paternidade oficial ficou com o animador e diretor Tex Avery, que definiu o nome, o visual e a personalidade dele em “The Wild Hare”.
Avery tinha 38 anos e trazia no currículo o sucesso dos desenhos do porquinho Gaguinho e do pato preto Patolino.
Desde a estreia, Pernalonga era diferente de Mickey (e qualquer outro) porque estava adiante no tempo. Foi o primeiro dos desenhos dedicados ao público infantil a ser curtido por gente grande sem que adultos precisassem despertar a criança dentro de si.
Alguns pais se divertiam mais com ele do que os filhos. O filão de humor em desenhos para adultos só se desenvolveria bem depois, nos anos 1990.
Pernalonga é o primeiro trapaceiro a se dar bem na cultura pop. Até os anos 1970, os bandidos em Hollywood nunca tinham sucesso. Mesmo interpretados por galãs charmosos, acabavam punidos no fim da história, como uma justiça moral imposta pelos estúdios. Isso só começou a mudar com “Golpe de Mestre”, de 1973, quando Paul Newman e Robert Redford conseguiram lucrar com suas falcatruas.
Pernalonga é malandro, enganador mesmo, e sempre sai por cima nos confrontos com outros personagens. Ele mente, é arrogante, dissimulado, se veste de mulher, finge ser o que não é, prepara armadilhas. E, no final, todos gostam dele.
O coelho teve imenso sucesso logo nos primeiros desenhos e essa popularidade só foi aumentando durante a Segunda Guerra Mundial, até 1945.
A Warner soube usar o coelho no papel de grande desafiador dos inimigos da pátria. Ele protagonizou desenhos como fuzileiro naval em combate, azucrinando soldados japoneses e infernizando até Hitler.Muitas tramas criadas nos anos seguintes são de humor adulto, complexas, com alusões a irmãos Marx, ópera, Shakespeare, genocídio de índios americanos, Lei Seca e outras referências incompreensíveis para as crianças.
E, na voz original do dublador Mel Blanc, Pernalonga teve durante décadas um evidente sotaque nova iorquino que o credenciaria a ser um quinto personagem em “Seinfeld”, já que o ritmo de piada verbal é o mesmo. Os diálogos dos desenhos questionam o comportamento aceito como normal pela sociedade. Mais “Seinfeld” impossível.
Em seu processo de desestabilizar o pobre coitado escalado no roteiro como vítima, quase sempre Gaguinho, Patolino ou Hortelino Troca-Letra -caso raro de um personagem humano entre tantos animais antropomórficos no elenco da Warner-, Pernalonga persegue o absurdo. Chuck Jones, um dos diretores do estúdio, exigia que cada desenho tivesse pelo menos um ou dois momentos para desafiar totalmente a lógica.
Jones foi um dos grandes responsáveis pela preservação das características que Avery criou para Pernalonga. Em 1941, uma discussão com o chefão do estúdio, Leon Schlesinger, fez Avery pedir demissão e passar para a MGM, rival da Warner na animação. Ele produziu outros desenhos magistrais pelas décadas seguintes, mas sem personagens tão marcantes.
As características de Pernalonga imaginadas por Avery eram tão perfeitas que Jones manteve em piloto automático os roteiros e o visual em desenhos impecáveis. Alguns exibem os melhores momentos da chamada Era de Ouro da Animação, até os anos 1960.
Nas últimas quatro décadas, a nova geração de animadores não preservou a qualidade das aventuras da turma do Pernalonga. Os desenhos deixaram de ter uma produção regular e, na contramão da alma original do personagem, trataram de infantilizar suas histórias.
As tentativas de modernização incluíram uma versão baby do coelho -um fiasco-, uma variação teen com resultados ainda piores–, a adoção de um sobrinho chato e um longa de cinema que pôs Pernalonga ao lado do ídolo do basquete Michael Jordan -“Space Jam”, de 1996.
O agora octogenário Pernalonga tem sua genialidade preservada nos desenhos clássicos da Warner. Qualquer curta produzido nas décadas de 1940 e 1950 é diversão inteligente, cínica e ácida.
Esse Pernalonga raiz sempre surpreende, mesmo com alguns elementos cômicos recorrentes, como a cenoura do canto da boca e a célebre frase “what’s up, doc?”. Na dublagem brasileira, “o que que há, velhinho?”.
Em alguns desenhos, os roteiristas mandam Pernalonga para outros países. Esses episódios sempre começam com a mesma piada. O coelho vem cavando seu caminho por baixo da terra e então abre um buraco na superfície, aparecendo em algum lugar da Europa.
Ali, diante da torre Eiffel ou do Coliseu romano, ele faz uma cara contrariada e diz “acho que eu deveria ter virado à direita em Albuquerque”, piada que ajudou a divulgar para o mundo a cidade no estado americano do Novo México, a milhares e milhares de quilômetros da Europa. Um desafio à lógica, como Chuck Jones apreciava.