Grupo de índios isolados faz contato em aldeia do Acre em meio à pandemia

Um grupo de índios isolados fez contato com a aldeia Terra Nova, onde vivem os Kulina Madiha do rio Envira, na fronteira do Acre com o Peru. Relatos feitos ao GLOBO pelo cacique Cazuza Kulina dão conta de que, há mais ou menos uma semana, um índio chegou sozinho à aldeia e pernoitou na casa de um morador. Um dia depois, de acordo com Cazuza, homens, mulheres e crianças (estimados entre 10 e 20 indígenas) também chegaram. O contato, considerado raro por indigenistas, acontece em meio ao momento de maior risco desses povos por conta do avanço da Covid-19 dentro das florestas.

Por não terem memória imunológica para resistir às mais simples gripes, esses povos originários correm risco de serem dizimados caso sejam contaminados. O GLOBO apurou junto a moradores da aldeia Terra Nova que há índios kulina com sintomas de tosse, dor de cabeça e cansaço.

De acordo com Cazuza, eles foram embora levando alimentos (macaxeira, banana e milho), panelas, machado e algumas peças de roupa, cobertas e redes. A área onde vivem os Kulina Madiha é um dos pontos da Amazônia na qual não existe barreiras sanitárias instaladas pelo governo federal.

– Eram muitos, todos nus, havia crianças e mulheres também. Todos brabos (isolados). Foi a primeira vez que eles apareceram por aqui – afirmou o cacique, que fala na língua Madiha e encontrou dificuldades para se comunicar com eles. Cazuza não soube identificar qual grupo ou etnia pertencem os índios que estiveram na aldeia. Ele disse apenas que os homens usavam linha amarrada ao pênis (cinto peniano, comum entre algumas etnias) e não estavam armados. Eles teriam vindo de um lugar conhecido como Igarapé Maronal, no Alto Rio Humaitá.

Em 2014, houve contato de outro grupo de índios isolados também no rio Envira com Ashaninkas que vivem na Terra Indígena Kampa, do qual participou o sertanista José Meirelles.

Os kulina se ressentem da ausência de agentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Fundação Nacional do Índio (Funai). A região onde acontece este contato é uma das áreas apontadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil(Apib) no documento entregue à Sala de Situação criada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, para discutir o avanço da Covid-19 e a ameaça aos povos isolado durante a pandemia.

‘Morte em 24 horas’

Considerado uma das maiores autoridades quando se trata de povos indígenas isolados, o ex-presidente da Funai Sydney Possuelo afirmou que isso mostra o total descaso das autoridades para a questão indígena no momento mais delicado vivido por eles.

– Se eles tiveram contato, mínimo que tenha sido, já podem estar contaminados, não precisa nem levar roupa, basta uma tosse, um espirro. E nem falo de coronavírus, falo de gripe simples. Eles podem morrer em 24 horas.

Possuelo diz que essa “inoperância” da Funai na pandemia tem sido a marca registrada dessa gestão.

– Onde está a coordenação de povos isolados e de recente contato? Cadê um servidor experiente, especializado no assunto, que ainda não está lá acompanhando isso? – questiona Possuelo, que afirma ter sido o criador da Frente de Proteção Etnoambiental do rio Envira.

Procurada, a Funai diz que ainda apura o caso. De acordo com o órgão, uma “equipe está no local para qualificar as informações e que tem atuado para evitar qualquer risco de contágio a essas populações”. Porém, O GLOBO ligou neste sábado no orelhão da aldeia e confirmou que nenhum servidor havia chegado.

O GLOBO também procurou o coordenador de índios isolados e de recente contato da Funai, o missionário Ricardo Lopes Dias, mas ainda não obteve retorno. A coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena do Juruá, responsável pela área, , Iglê Monte da Silva, não quis comentar a situação.

Protocolos de emergência

Na semana passada, Barroso determinou que o governo federal complemente o plano de barreiras sanitárias para povos indígenas isolados e de recente contato, apresentado como medida para evitar o avanço da contaminação da Covid-19 nas aldeias. O ministro atendeu a um pedido da Advocacia Geral da União (AGU), que alegou ter deixado de incluir um estudo da Apib “por falta de tempo hábil”.

O relatório da Apib aponta diferenças significativas entre barreiras sanitárias, que requerem protocolos e estratégias sanitárias, e as Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs), que já existem e fazem a defesa do território. O plano do governo foi criticado por ser genérico demais, na avaliação de integrantes desses órgãos e da Apib.

Os especialistas defendem que a existência de BAPEs não dispensa a montagem de barreiras sanitárias. Eles também questionam a ausência da ação do governo para implementar a Portaria 4094, que prevê a existência de Planos de Contingência como cuidados com isolados e que não estão sendo observados.

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