Se há alguma coisa quase certa em relação à atual pandemia é que ela não será a última que a humanidade vai enfrentar. Só não se sabe quando e de onde virá a próxima e qual seu agente causador, se um vírus, bactéria ou outro micro-organismo.
A julgar pelas últimas que ocorreram, há chances significativas de ela ser causada por algum tipo de vírus influenza, como foram os casos, por exemplo, das gripes russa, em 1889-90, e asiática, em 1957-58, ambas causadas pelo H2N2, com 1,5 milhão e 2 milhões de mortos, respectivamente.
Depois houve outras epidemias de longo alcance, como a gripe de Hong Kong, em 1968-69, causada pelo vírus influenza H3N2 (3 milhões de mortes).
Houve outras, como a da gripe espanhola, que, apesar do nome, surgiu primeiro nos Estados Unidos, e, segundo estimativas, matou entre 50 e 100 milhões de pessoas em todo o mundo.
O mais recente surto causado por este tipo de vírus foi o da gripe suína, em 2009-10, que teve como agente o H1N1, responsável pela morte de 17 mil pessoas no planeta.
Para a virologista Camila Malta Romano, do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, da Universidade de São Paulo (USP), a pandemia de covid-19 está longe de ser a última do planeta.
“É apenas uma questão de ‘quando’ e não de ‘se’ a próxima vai surgir”, diz. “Esses surtos, embora menos comuns do que epidemias, ocorrem de vez em quando e temos exemplos passados de situações esporádicas como a peste bubônica e mais de uma de influenza (gripe espanhola, asiática, suína).”
Mas, segundo ela, parece que ultimamente a emergência de agentes potencialmente pandêmicos tem sido mais frequente. “Veja as próprias pandemias de influenza, de 1918, 1957-58, 1968-69 e 2009-10”, explica.
“Antes teve a da Sars, causada por um vírus bastante similar ao atual Sars-Cov-2, causador da covid-19, a primeira epidemia do século 21 (em 2003). Já naquele momento, sabíamos que não seria a última. Portanto, a epidemia do Sars-Cov-2 certamente também não será.”
Degradação ambiental
O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, também afirma que o mundo ainda enfrentará muitas pandemias.
“Haverá outros vírus ou micro-organismos tentando colonizar o homem, nos usando como reservatório e produzindo doença”, diz ele, que foi fundador e presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Seu colega médico, Jair Ferreira, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) igualmente acredita que “quase” certamente a atual não será a última, porque de tempos em tempo a humanidade sempre enfrenta pandemias. “Não há razão para supor que esta venha a ser a última”, diz.
Mas, afinal, por que elas são inevitáveis, muita gente se pergunta? “Isso acontece porque estamos destruindo o meio ambiente”, resume Vecina.
“Esses vírus e outros micro-organismos vivem na natureza. Quando acabamos com ela, diminuímos o espaço vital deles. Então, eles buscam alternativas para continuarem existindo. E por isso, saltam de um hospedeiro para outro. Não é à toa que tivemos gripe aviária, suína e outras.”
Há um outro problema. “Não só estamos invadindo o espaço desses micro-organismos, como, em contrapartida, estamos proporcionando, ao mesmo tempo, muitos outros lugares para eles, com a criação intensiva de gado, de porco, de frango, dando oportunidade deles aumentarem outros espaços para prosperar”, explica Vecina.
Em seu livro Inimigo Mortal – Nossa guerra contra os germes assassinos, os autores, Michael Osterholm e Mark Olshaker, vão um pouco mais além.
Eles dizem que a próxima pandemia encontrará “um mundo em equilíbrio precário em países em desenvolvimento, invasão de habitats naturais que trouxeram reservatórios de doenças de animais à porta de nossas casas, centenas de milhões de seres humanos e animais hospedeiros vivendo colados uns nos outros e uma cadeia de suprimentos planetária que fornece de tudo, de eletrônicos e autopeças a remédios sem os quais até hospitais avançados deixam de funcionar”.
Criando riscos
Para Fernando Aith, professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da FSP-USP, esse é um cenário bastante realista.
“Para além de ampliar os riscos naturais (temporais, ciclones, secas), o homem está criando riscos que sequer sabemos o potencial de dano para a sociedade”, diz. “Seja nas novas tecnologias (reprodução assistida, clonagem, engenharia genética, inteligência artificial) seja na ocupação urbana, que, no padrão brasileiro, já gera a dengue, a zika, a chikungunya, a hanseníase e a tuberculose, por exemplo.”
Segundo Aith, para contornar isso e diminuir os riscos ou os danos de uma nova pandemia, a humanidade deve mudar radicalmente o seu conceito de “desenvolvimento”.
“Deve deixar de produzir tanto lixo e passar a viver em harmonia com a natureza”, defende.
“Além de mudar a matriz industrial e econômica, para que se passe a considerar a necessidade de preservá-la. Respeitar os limites do ambiente e o seu tempo de recuperação. Parar imediatamente de degradar e desmatar florestas. Observar mais rigidamente a ética em pesquisa e a do cuidado. Fortalecer os sistemas de vigilância em saúde dos países e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Reduzir iniquidades entre nações e no interior delas.”
A médica Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel, da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, lembra que o ser humano, inserido na natureza, está sujeito às suas leis.
“Uma delas é a convivência com demais seres vivos e esta pode ser extremamente benéfica ou justamente o contrário”, diz. “Em relação a micro-organismos, com especial referência a vírus, a taxa de multiplicação deles é naturalmente muito alta. Consequentemente, a possibilidade de ocorrerem mutações genéticas é elevada. As mudanças advindas podem significar a não identificação ou inadequação de nossa resposta imune ao entrarmos em contato com eles, o que pode causar doença.”
De acordo com ela, as possibilidades para que isso ocorra são infinitas e, portanto, “estamos sim sujeitos” a novas pandemias.
“Entretanto, a eclosão de uma epidemia, sua extensão e a gravidade não são facilmente previsíveis, pois dependem de outras variáveis”, explica.
“Dentre alguns exemplos, há a capacidade imune, determinada geneticamente em certa população e certas características dela, como a sua densidade e o estado nutricional daquele grupo. Enfim, a simples presença de um micro-organismo não significa necessariamente que ele provocará doenças.”
Por essa e outras razões, Camila diz que é difícil prever se a próxima pandemia será mais ou menos mortal do que a atual. “Isso depende das características do agente biológico (vírus, fungo ou bactéria), letalidade e transmissibilidade”, diz.
“A de Sars em 2003, por exemplo, se espalhou rapidamente e tinha uma mortalidade muito maior do que a covid-19, mas infectou apenas cerca de 8.000 pessoas no mundo e matou cerca de 10% delas. Portanto, só sabemos que sim, haverá outras pandemias, mas se mais ou menos mortais, é impossível dizer.”
Se não dá para evitar uma nova pandemia, pelo menos é possível amenizar seus efeitos e o número de mortes que pode causar.
“Uma população bem informada quanto aos riscos certamente seria de grande valia”, diz Cristina, que integra o Grupo de Estudos da História das Ciências da Saúde, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Não somos imortais e, infelizmente, perdas de vidas ocorrem e ainda ocorrerão nesta e nas próximas.”
Segundo ela, a despeito de existirem variáveis inevitáveis para o desenvolvimento de um surto epidêmico, saber lidar com ele, com dados confiáveis, concebidos pela experiência e pela ciência geraria orientações imprescindíveis no comportamento da população.
“Deve-se alertar sem apavorar”, recomenda. “Explicar como proceder e a razão desse procedimento, sem imposições. Unir a população em torno do inimigo maior – o vírus e suas implicações na saúde, na economia e na sociedade em geral – e não dividi-la e confundi-la absurdamente.”