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Com Covid-19, há risco em usar ar-condicionado?

Por BBC NEWS

A cada verão que passa, mais aparelhos de ar-condicionado são comprados no Brasil — nos últimos anos, esse mercado tem crescido no país, apesar da crise econômica e da queda no consumo impactando a venda de outros produtos.

Mas depois da pandemia de coronavírus de 2020, há dúvidas se, com o calor que se aproxima, poderemos ligar esses milhões de aparelhos que estão nas nossas casas, pequenos comércios, lojas, shoppings, carros e transporte público. Afinal, há cada vez mais indícios da transmissão do vírus pelo ar, e em julho um estudo da China surpreendeu ao apontar o ar-condicionado de um restaurante como vilão na infecção de 10 pessoas de três famílias diferentes almoçando ali.

Se você já está suando frio com a possibilidade de não poder usar estes aparelhos, adiantamos logo algumas respostas obtidas com especialistas entrevistados pela BBC News Brasil.

Primeiro, o ar-condicionado em si não é o vilão, mas sim o confinamento coletivo — ou seja, seu uso em ambientes fechados, em que há pouca ou nenhuma circulação de ar, com presença de outras pessoas que podem estar infectadas.

Por isso, com o coronavírus circulando, deixar portas e janelas fechadas enquanto o ar está ligado não é aconselhável. No cenário atual, deverá ser necessário apelar para aparelhos que convivam melhor com estas aberturas, como ventiladores e climatizadores; ou usar o ar-condicionado com frestas abertas; ou ainda o ar-condicionado associado a ventiladores e janelas abertas.

Isso a não ser que o sistema de refrigeração em questão inclua equipamentos de renovação mecânica — o que, segundo especialistas, seria o ideal, mas exige planejamento e altos custos de manutenção, sendo raramente visto no Brasil.

Vamos às explicações — mas vale antes lembrar que ainda há muito a ser conhecido sobre o vírus e estudos em curso, portanto elas não são definitivas.

O restaurante chinês: ar-condicionado central, exaustor e sem janelas

O artigo científico sobre o restaurante chinês que colocou o ar-condicionado sob holofotes foi publicado por pesquisadores do Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) de Guangzhou no periódico científico Emerging Infectious Diseases, editado pelos CDCs (Centros de Controle de Doenças) dos Estados Unidos.

Eles rastrearam pessoas que almoçaram no dia 24 de janeiro em um restaurante de cinco andares, sem nenhuma janela, com exaustores e ar-condicionado central (sistema capaz de climatizar vários ambientes a partir de um único equipamento; os modelos variam em porte e na tecnologia empregada pra distribuir o ar frio, sendo comumente encontrados em bancos, supermercados e shoppings).

Um cliente, ainda assintomático, tinha viajado de Wuhan, cidade chinesa em que o vírus começou a infectar humanos, para Guangzhou, onde fica o restaurante. Ele e sua família se sentaram em uma mesa ao lado de outras duas, com distância de cerca de um metro entre elas. As três mesas estavam na reta de um aparelho de ar condicionado.

Ao longo dos dias seguintes, o cliente vindo de Wuhan e mais nove pessoas presentes nessas três mesas foram diagnosticadas com covid-19.

Os autores defenderam que a transmissão do coronavírus seja explicada não só pelas gotículas de material infeccioso (como a saliva de uma pessoa contaminada), que têm tamanho maior, correm distâncias menores e duram menos tempo no ar, mas também pelos aerossóis, partículas menores do material infeccioso que ficam suspensas no ar por mais tempo e têm alcance mais distante.

No caso do restaurante em Guangzhou, os pesquisadores dizem que não há certeza que a infecção tenha ocorrido por meio dos aerossóis, já que outros clientes e funcionários no mesmo ambiente não foram infectados. Mas eles sugerem que os aerossóis possivelmente estavam mais concentrados na área das mesas próximas, carregados por correntes do ar condicionado.

A conclusão do artigo recomenda que restaurantes aumentem a distância entre as mesas e melhorem a ventilação.

Diversos cientistas criticam que autoridades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) estão subestimando o potencial transmissivo dos aerossóis (leia: Cientista critica visão da OMS sobre contágio pelo ar: ‘Não deixam a gente se proteger direito’). Em julho, um grupo de mais de 200 pesquisadores escreveu uma carta defendendo o reconhecimento dessa via de transmissão.

Uma das autoras da carta, Lidia Morawska, professora da Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, respondeu à BBC News Brasil por e-mail não acreditar que os aparelhos de ar-condicionado sejam um problema ou risco em si, e sim a falta de ventilação — que ajuda a diluir contaminantes.

“Não ter ventilação significa a não retirada de partículas infectadas de ambientes internos. O ar pode ser condicionado — o que significa ser esfriado ou aquecido —, mas uma ventilação eficiente precisa ser garantida”, escreveu Morawaska, também consultora da OMS sobre qualidade do ar.

Falando do artigo sobre o restaurante chinês, ela mencionou também o direcionamento do ar.

“As correntes de ar estavam passando pela pessoa infectada e carregaram o vírus para outras pessoas. O mesmo acontece em aviões, por exemplo, onde a corrente de ar é unidirecional, e em outras situações. A questão é a direção da corrente de ar, que pode ser induzida por diferentes fatores, como uma porta aberta.”

Cuidado com ventilação e qualidade do ar é pouco comum no Brasil, apontam entrevistados

Entretanto, ao menos no Brasil, é comum que as pessoas se preocupem simplesmente com que o ar-condicionado abaixe a temperatura, e não com as condições de ventilação ou qualidade do ar, diz Oswaldo Bueno, engenheiro e consultor da Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento (Abrava).

Aparelhos mais simples, como do tipo minisplit, não apenas se valem da recirculação do ar — ou seja, pegam o “mesmo” ar de um ambiente para reciclá-lo, o que é um problema se este estiver contaminado —, como normalmente não vêm acompanhados de mecanismos de renovação mecânica do ar. No caso de aparelhos de janela, alguns modelos têm a opção da renovação, mas nem todos.

Até existem opções no mercado de aparelhos para fazer isso, como insufladores (que incluem filtro e ventilação) e caixas de ventilação, mas é “raríssimo” que isso seja uma preocupação em casas ou pequenos negócios, diz Bueno. E deveria ser alvo de maior atenção mesmo antes da covid-19, pois o ar pode concentrar outros vírus, bactérias e fungos, além de gases tóxicos.

“O grande mercado brasileiro hoje é o das pequenas instalações, sejam residenciais ou comerciais. Imagina um consultório de dentista: ele vai ter uma pequena máquina funcionando. Essa máquinas representam cerca de 75% de todo e qualquer equipamento no mercado brasileiro. E todas vezes que essas máquinas são instaladas, não há preocupação com o ar externo”, explica o engenheiro, recomendando que, com a pandemia, esses aparelhos sejam usados com janelas e portas abertas, e até mesmo junto com ventiladores perto destas, ainda que isso faça os ambientes ficarem menos frios que o ideal.

Erick Campos, engenheiro mecânico da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), do campus de Governador Valadares, escreveu um relatório justamente sobre os impactos da pandemia nos sistemas de ar condicionado na realidade brasileira, em conjunto com o professor Bruno Augusto Guedes, também da UFJF.

Campos diz que, mesmo em cenários em que a ventilação não foi prevista, uma nova adaptação para tempos de covid-19 pode ser inviabilizada por custos, não só com a instalação mas também com o maior gasto de energia. Afinal, a renovação retira ar mais frio e insere o ar externo, geralmente mais quente, então o trabalho para refrigerar é maior. Isso significa também que em muitos casos a potência dos aparelhos pode ser insuficiente para tal adaptação, já que originalmente não foi calculada a entrada de mais ar externo.

“As informações disponíveis indicam que é arriscado usar o ar-condicionado sem esse sistema de ventilação. O risco é que os aerossóis aumentem sua concentração naquele ambiente, e uma pessoa que aspire estas partículas pode ser contaminada. A solução é contraintuitiva, como usar o ar-condicionado com janelas e portas abertas ou, se possível, buscar alternativas para o ar-condicionado por um tempo”, afirma o engenheiro da UFJF, sugerindo ventiladores e climatizadores (ou refrigeradores evaporativos), que convivem melhor com ambientes abertos.

Ele pondera, entretanto, que em casas onde vive uma família os riscos de transmissão acontecem em várias situações, e o contato continua sendo mais importante para a transmissão do coronavírus do que uma eventual transmissão por meio das correntes de ar condicionado. Por isso, em todos os casos, o uso de máscaras e o distanciamento continuam sendo fundamentais.

A importância da ventilação vale também para carros e ônibus, embora alguns veículos tenham no seu sistema de climatização a opção de renovação do ar, com troca entre o interno e externo.

Em relação aos filtros convencionais, que normalmente retêm contaminantes nos aparelhos, as evidências indicam que, para o coronavírus, eles não são tão eficazes — pois o patógeno é leve o bastante para ser aspirado pelo ar-condicionado e ao mesmo tempo pequeno para atravessar os filtros, explica Campos.

Mas Bueno lembra que os filtros são importantes também para conter partículas de outros patógenos e também da poluição, o que contribui para a proteção do sistema respiratório das pessoas — ainda mais os filtros mais eficazes, com eficácia mínima de 50% para partículas menores que 0,4 µm. Entretanto, aparelhos simples como o minisplit tampouco têm filtro, e sim uma tela de proteção que, segundo os especialistas, é insuficiente.

Adaptações em shoppings

Já sistemas maiores, como em prédios comerciais ou shoppings, costumam ter mecanismos de renovação do ar — em que o ar “usado” é extraído do ambiente interno e canalizado para uma unidade de tratamento, geralmente no telhado, onde há mistura com ar fresco.

Esses sistemas costumam permitir até mesmo a regulação da quantidade de ar fresco que será injetada no prédio. No contexto de pandemia, quanto mais, melhor — mas isso traz também mais gastos com energia.

Bueno lembra que o ar externo é tão importante pois sua limpeza acontece naturalmente, com a ajuda da chuva e dos ventos.

Mesmo em locais com renovação mecânica, a abertura para o ar externo também é desejável — em uma cartilha da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) em parceria com o Hospital Sírio-Libanês, recomenda-se por exemplo que as portas dos shoppings permaneçam abertas e que exaustores em sanitários e cozinhas operem em nível máximo de vazão de ar.

“Instalações completas, funcionando de acordo com seu projeto, tendo plano de manutenção e controle, são saudáveis e vão proteger. Foi prevista a filtragem e a renovação do ar”, explica Oswaldo Bueno, apontando que sistemas de climatização em áreas públicas costumam ser submetidos a mais normas e leis, desde seu planejamento.

Segundo uma lei federal de 2018, todos os ambientes de uso público e coletivo com ar condicionado devem ter um Plano de Manutenção, Operação e Controle (PMOC), com controle por exemplo de níveis de concentração de poluentes, um indicador sobre a qualidade do ar. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a fiscalização do plano é de responsabilidade de órgãos de vigilância locais, e não há dados nacionais sobre autuações e multas.

A perspectiva é que o país tenha mais e mais aparelhos de ar-condicionado com o passar dos anos, segundo o relatório internacional The future of cooling, da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), publicado em 2018. Em 2016, o Brasil tinha aproximadamente 27 milhões de aparelhos de ar-condicionado, incluídos aí residenciais e comerciais. A previsão é que, em 2050, o número chegue a 165 milhões de aparelhos.

Mas o país está longe da liderança mundial — apenas China, Japão e Estados Unidos concentram dois terços de todos os aparelhos do mundo.

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