Ícone do site ContilNet Notícias

Folha de S. Paulo: ‘Time do goleiro Bruno joga final no Acre contra equipe da polícia’

Por FOLHA DE S.PAULO

Há um silêncio na linha quando Edener Franco, presidente do Galvez, do Acre, escuta a pergunta sobre um jogador do time adversário na decisão do segundo turno do estadual.

“Aqui não caberia, mas ele tem um direito garantido de progressão da pena. Eu trabalho com tantos criminosos, vejo que as pessoas conseguem se ressocializar e ter uma vida decente. É isso o que a gente espera dele”, afirma. Franco se refere ao goleiro Bruno.

O Galvez será campeão acreano pela primeira vez em sua história se derrotar o Rio Branco neste sábado (11). O jogo será às 19h (de Brasília) e terá transmissão na plataforma MyCujoo, pela internet. A equipe já havia sido a vencedora do primeiro turno. Se perder, terá mais duas partidas contra o mesmo rival pela decisão estadual.

O Galvez é o time da Polícia Militar do Acre. Edener Franco é coronel da corporação. Até o ano passado, a equipe contava com jogadores policiais, mas o clube decidiu ficar apenas com atletas profissionais no último ano. “Há um soldado em estágio que é muito bom. Quando acabar, o queremos no time”, avisa o presidente. O sargento Pablo Simões atua na comissão técnica.

Por causa da ligação com a PM ele diz que, no Galvez, Bruno Fernandes, condenado a 22 anos e 3 meses de prisão pela morte de Eliza Samúdio, em 2010, não teria lugar. O corpo dela nunca foi encontrado. Na época do crime, o atleta era jogador do Flamengo.

“Nossa imagem é a mesma da Polícia Militar. Isso é inegável. A gente tenta ser o exemplo para o futebol no Acre. Pensamos na competição, claro, mas temos apoio da comunidade [de policiais], acesso ao comandante-geral [da corporação], completa o presidente.

Criado há nove anos, o Galvez foi vice estadual nas últimas três temporadas.

Em julho do ano passado, Bruno passou para o regime semiaberto e começou a escutar propostas após receber autorização da Justiça para trabalhar. Quase todas as equipes que o sondaram ou tentaram contratá-lo desistiram por causa da repercussão negativa, ainda que em alguns casos ele tenha chegado a disputar jogos.

Foi assim com o Barbalha, Poços de Caldas, Boa Esporte, Fluminense de Feira da Santana e Operário de Várzea Grande. Há dois meses, o Rio Branco anunciou a sua contratação.

“Vi que outros times que quiseram levá-lo perderam patrocinadores. Pensei: vou comprar essa briga. Falei com ele e gostei muito da conversa. Acertei um valor de salários que dava para mim. O Rio Branco contratou o Bruno por alguns motivos. A gente precisava de um goleiro, ele merece uma chance, já pagou a pena dele e o Rio Branco não deve nada para ninguém”, diz o presidente do clube, Neto Alencar.

O anúncio gerou revolta. Como ocorreu em outros casos, movimentos de mulheres foram à porta do estádio protestar. A OAB do Acre divulgou uma nota de repúdio, e o único patrocinador do clube rescindiu o acordo.

“A contratação pode ser encarada como um desrespeito para com todas as mulheres acreanas, em especial aquelas que foram ou são vítimas de violência doméstica. Bruno ainda cumpre sua pena e pesa sobre ele a acusação da ocultação do corpo de sua vítima. Trata-se de um feminicídio bárbaro, cometido com requintes de crueldade, por quem era ídolo. Não se pode admitir encarar com naturalidade vê-lo ser reinserido através do esporte que o consagrou”, disse a entidade dos advogados.

Rose Costa anunciou que pediu demissão da equipe de futebol feminino do Rio Branco após o anúncio. Segundo ela, a contratação de Bruno é inaceitável.

“Ele cometeu um crime hediondo e não mostrou arrependimento. Como é possível falar em formação de atleta em um clube que contrata um feminicida? Eu me nego a fazer parte disso. Não tenho nada contra o presidente, mas foi uma decisão infeliz”, afirma Rose.

Alencar rebateu dizendo que ela não tinha vínculo com o clube e nem havia time feminino na agremiação.

“O patrocinador era um supermercado da cidade que dava comida para os garotos do alojamento e pagava R$ 3 mil. Não era um patrocínio que fazia diferença para nós. Se fosse algo como R$ 50 mil por mês eu pensaria duas vezes. Não era o caso”, completa o presidente.

Nesta semana, Bruno obteve liminar para treinar e jogar sem a tornozeleira eletrônica, que até então era obrigado a usar a todo momento. Ele registrou um Boletim de Ocorrência e fez exame de corpo de delito para mostrar que havia se machucado por causa do objeto.

“Ele é um reeducando e, como tal, tem de usar a tornozeleira. E se o aparelho for danificado, o clube tem de arcar com o custo”, defende o promotor Tales Tranin, do Ministério Público do Acre.

Alencar deixa no ar a possibilidade de que o Galvez tenha influenciado a decisão de fazer com que o jogador atue com a tornozeleira, por causa da influência do clube na polícia. Franco foi à imprensa dizer que a insinuação é absurda.

Um dos motivos da criação do clube, em 2011, foi melhorar a imagem da Polícia Militar. O principal momento da equipe aconteceu em 2016, quando enfrentou o Santos pela Copa do Brasil. O salário base do elenco atual é de R$ 1.300 mensais.

“Nosso time tem a imagem da polícia, mas não podemos confundir as coisas. O Bruno é uma pessoa normal hoje em dia. Tem direito de trabalhar. Ele cumpriu a lei. Por ser um cara que já foi ídolo nacional, é a principal figura do campeonato. Se tivesse público, o estádio iria encher para assisti-lo”, diz o atacante Adriano, 26, que fez parte de dois dos últimos três vices do Galvez. Ele foi eleito o melhor jogador do Estadual de 2019.

Alencar não revela o salário de Bruno, que não quis dar entrevista. Em depoimento ao SBT, disse dormir com a cabeça tranquila e que não vai mais pedir perdão a ninguém.

Após a campanha ruim no primeiro turno e a parada por causa da pandemia da covid-19, o presidente reformulou o elenco do Rio Branco. Ficaram apenas quatro jogadores. Uma das contratações foi o goleiro. Desde então, o time está invicto. Na semifinal, venceu o Plácido de Castro por 2 a 0.

Segundo o presidente, Bruno fala antes e durante os jogos mais do que o treinador, o português João Mota.

Os jogadores do time ouvidos pela Folha defendem a contratação de Bruno com o argumento de que ele já cumpriu sua pena e tem o direito de trabalhar. Eles afirmam ainda que é um chamariz para o futebol local.

Sair da versão mobile