Depois do caso envolvendo a promoção de 607 procuradores federais da Advocacia-Geral da União (AGU), ganhou força entre parlamentares projetos que aumentam o escopo da reforma administrativa. O texto encaminhado ao Congresso no início do mês prevê o fim das promoções automáticas, mas blinda membros de Poderes, como procuradores e juízes, e só vale para servidores que forem contratados depois que as novas regras entrarem em vigor.
Mas parlamentares podem alterar o texto para incluir outros Poderes no escopo da reforma. A ideia é defendida pelo deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), coordenador da frente parlamentar pela reforma administrativa.
Segundo ele, a promoção em massa que aconteceu na AGU pode ajudar a angariar apoio popular para uma reforma que atinja os atuais servidores, inclusive os que já estão no topo das carreiras.
“Uma das vedações que a reforma traz é justamente a promoções automáticas por tempo de serviço. Só que essa vedação só está para novos servidores. Se a PEC estivesse em vigor e nós já tivéssemos esse instrumento, também para os atuais servidores, isso não aconteceria.”
Segundo o parlamentar, o fato de o procurador-geral suspender as promoções e do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), ter apresentado um decreto para sustar a medida podem indicar que o governo estaria disposto a estender essas vedações para os atuais servidores.
Além do caso da AGU, o movimento Livres e o deputado Pedro Cunha Lima (PSDB-PB) levantaram que, em janeiro, procuradores e subprocuradores do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho embolsaram mais de R$ 15 milhões em auxílios, como alimentação, transporte, moradia e creche.
O deputado da Paraíba apresentou uma emenda ao projeto da reforma administrativa para acabar com esses “penduricalhos” para todos os servidores que ganham mais que 25% dos salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), algo em torno de R$ 10 mil.“Uma das minhas grandes discordâncias é não ter a camada de cima da reforma. Como você faz uma reforma administrativa e exclui justamente quem mais tem? É um sinal que, de fato, estamos num país da desigualdade de maneira escancarada.”
Na visão do parlamentar, a promoção dos servidores da AGU para o topo da carreira pode ajudar a fomentar apoio para a reforma.
“É muito equivocado você imaginar que as pessoas não estão antenadas, acompanhando, e não estão ficando cada vez mais enojadas com tudo isso. Estamos no meio de uma pandemia, tanta gente perdendo 100% da renda, numa crise gigantesca, Brasil com dificuldade enorme de poder funcionar, muita gente sem emprego e, no meio disso tudo, o poder público não consegue se conectar minimamente com a realidade.”
Pressão contra de todos os lados
Após forte pressão do Palácio do Planalto, do Congresso, do Tribunal de Contas da União (TCU) e da sociedade, a Advocacia-Geral da União (AGU) suspendeu nesta quinta-feira a promoção de mais de 600 procuradores federais, que passariam a ganhar R$ 27,3 mil, em meio à pandemia.
Não bastasse o número de pessoas promovidas de uma só vez, o movimento ocorreu em meio às discussões da reforma administrativa, que busca, justamente, tentar acabar com promoções automáticas e reduzir as diferenças entre as carreiras do setor público e privado.
Embora a AGU negue nos bastidores que tenha sofrido qualquer pressão para rever sua decisão, logo pela manhã, antes mesmo de embarcar para Resende (RJ), o presidente Jair Bolsonaro autorizou o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, a entrar com um decreto legislativo para sustar a medida.
No Palácio do Planalto, a avaliação é que o governo errou ao não suspender antecipadamente as promoções dos servidores. Segundo interlocutores de Bolsonaro, as promoções já estavam programadas, mas não deveriam ocorrer neste momento de pandemia. Foi uma “bola fora” não ter lidado com a questão antes de ela virar um problema.
A suspensão foi determinada pelo procurador-geral federal Leonardo Silva Lima Fernandes, o mesmo que autorizou as promoções na semana passada. Em despacho assinado por ele, as promoções teriam sido realizadas de forma legal, mas seriam suspensas por razões de “conveniência e oportunidade”.
Antes da desistência da AGU se tornar pública, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MP-TCU) já tinha pedido a suspensão do pagamento do reajuste. Segundo o procurador responsável pelo pedido, Lucas Furtado, a promoção e o aumento destinado ao grupo em meio à crise econômica, além de ilegais, “constrangem” a sociedade brasileira.
O pedido de Furtado encontrou respaldo imediato entre ministros do TCU que, de forma reservada, consideraram “um escândalo” a promoção de uma única vez. Já o recuo da AGU, foi avaliado como razoável, segundo um ministro.
Foram promovidos 607 procuradores, um salto considerável em comparação com os 83 promovidos em 2019. Com a progressão, 3.489 ou 92% dos 3.738 procuradores federais da AGU atingiriam o topo da carreira.
‘Distorção gravíssima’
Na quinta-feira pela manhã, antes da suspensão da medida, a economista Ana Carla Abrão, da Oliver Wyman no Brasil, classificou a promoção como “distorção gravíssima”. Ela participou do seminário “E Agora, Brasil?” sobre a reforma administrativa, uma realização dos jornais O GLOBO e Valor Econômico, com patrocínio do Sistema Comércio através da CNC, do Sesc, do Senac e de suas Federações.
“Há distorções gravíssimas no modelo atual, como as promoções que foram feitas na AGU e outras situações inaceitáveis, como férias de 60 dias”, frisou Ana Carla, que avalia que a estrutura atual da máquina pública perpetua o mais grave problema do país, a desigualdade.
Para Flávio Serrano, economista-chefe do Banco Haitong, a promoção, ainda que cancelada, gera ruídos:
“Isso atrapalha as discussões das reformas. Somos uma caixa de distorções.”
O líder Ricardo Barros também chegou a apresentar um projeto de decreto legislativo (PDL) para sustar os efeitos da portaria da AGU. “Diante do grave quadro de pandemia global e do cenário de ajuste fiscal no Brasil, essa promoção se mostra inoportuna e revela preocupante distanciamento social por parte de quem a editou”, disse Barros em nota.
No Ministério da Economia, a avaliação é que o episódio reforça a necessidade da reforma administrativa e de se incluir na Constituição a proibição às promoções e progressões automáticas.
Com a legislação atual, situações semelhantes podem ocorrer em outros órgãos que são livres para conceder promoções, desde que o custo com os reajustes caiba no orçamento da instituição.
Foi justamente essa a justificativa dada pela AGU quando questionada: “os recursos para efetivação das promoções são previstos na lei orçamentária anual”. Procurada, a AGU disse, em nota, que o advogado-geral da União, José Levi, não interferiu seja na promoção dos procuradores, seja no recuo anunciado nesta quinta-feira:
“O Advogado-Geral da União não interferiu no assunto, seja no fazer, seja no desfazer, porque o assunto é da autonomia interna da Procuradoria-Geral Federal. Prestar contas às estruturas internas e externas de controle é um dever diuturno da Administração Pública”.
“Foi neste contexto que a PGF, ao natural, houve por bem rever as promoções e, a seguir, prestar os devidos subsídios ao TCU se e quando demandada nos termos da representação”, continua a nota.
Na avaliação do presidente da Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), Marcelino Rodrigues, o recuo sobre as promoções foi um mau sinal.
“Se os procedimentos para a promoção foram todos legais, não havia motivos para voltar atrás. Obviamente, esse recuo aconteceu por conta da repercussão negativa da medida, mas isso é muito temerário. Temos certeza de que se recorrermos à Justiça, ganhamos a causa”, disse Rodrigues. [Foto de capa: Pablo Jacob/Agência O Globo]