Uma carta pública enviada com a assinatura de 130 pessoas para pedir ao STF que derrube a obrigatoriedade das vacinas contra covid-19 incorreu em fraude ao incluir o nome de ao menos nove pesquisadores que não foram consultados sobre o assunto. Um dos cientistas que pediu a retirada de seu endosso do documento foi o imunologista Jorge Kalil, da USP, que classificou o documento como peça política.
— Acordei ontem de manhã e meu WhatsApp estava repleto de mensagens, com pessoas que me conhecem perguntando se eu realmente tinha assinado aquele documento. Me conhecendo, elas achavam que eu não teria assinado — contou o cientista ao GLOBO. — Eu mantenho minha neutralidade política e a minha assertiva científica.
O documento em questão pede a “não obrigatoriedade de vacinação contra a covid-19, permitindo que os brasileiros possam fazer a sua escolha”, elencando argumentos como a preocupação com a segurança de vacinas às pressas. O manifesto inclui em sua argumentação que “o tratamento precoce utilizando fármacos com atividade antiviral e imunoterápicos se mostraram eficazes na redução da mortalidade”, uma referência à cloroquina.
Entre os nomes que encabeçavam o documento estavam Nise Yamaguchi e Anthony Wong, dois dos médicos de um grupo que tem buscado influenciar políticas públicas para adoção dos medicamentos que ainda carecem de evidência de eficácia em estudos clínicos prospectivos.
Segundo Kalil, o debate em que a carta está inserida é legítimo, mas o manifesto em si atenta contra a importância do desenvolvimento de imunizantes na luta contra a covid-19.
— A discussão sobre a obrigatoriedade da vacina é valida porque não sabemos que vacina virá, não sabemos se essa vacina cobrirá uma boa parte da população, não sabemos se vai imunizar os idosos — explica Kalil, que trabalha ele próprio no desenvolvimento de uma vacina na USP.
— Da forma que esta carta foi escrita, ela prejudica minha reputação. Eu sou um defensor da vacina, mas sou defensor também da qualidade das vacinas, e não quero tomar posições que se configurem como ideológicas. — explicou. — Nesta carta, além das vacinas, começaram a falar sobre hidroxicloroquina e outras coisas. Ficou algo político.
Proliferação no WhatsApp
Outro pesquisador que se surpreendeu ao ver seu nome incluído num manifesto que não endossou foi o infectologista Esper Kallás, também da USP.
O médico, um dos mais respeitados do país na área, envolvido com o desenvolvimento de vacina da dengue, descobriu sua assinatura fraudada por meio de uma jornalista que recebera o documento antes mesmo dos médicos.
Ao buscar informações sobre quem poderia ajudá-lo a retirar seu nome do documento, chegou ao contato uma pessoa que se identificou como assessora de imprensa prestando serviço para Nise Yamaguchi. A médica encarregada de organizar a lista de assinaturas, porém, foi Akemi Shiba, psiquiatra de Porto Alegre.
Quando conseguiu remover sua assinatura, porém, o manifesto já tinha se espalhado bastante no WhatsApp. Quem tentasse encaminhar o documento já recebia um alerta do aplicativo que impedia encaminhamento para múltiplas pessoas.
Nenhum jornal de grande circulação chegou a divulgar o conteúdo com assinaturas falsas, mas a lista com os nomes indevidamente incluídos foi ao ar pelo “Jornal da Cidade Online”, site frequentemente mencionado como núcleo de desinformação por agências de checagem que corrigem informações falsas. O site chegou a perder anunciantes após ter várias notícias desmentidas.
Kallás diz que se surpreendeu ao ver seu nome entre o de muitos médicos com quem não tem nenhuma relação.
— Além de essa turma ter pessoas extremamente controversas, eles divulgam falsas, notícias não sustentadas pela bibliografia médica — afirmou. — Estão procurando ter foco da mídia para exibir posições que não encontram respaldo em termos científicos.
‘Grande bobagem’
Um outro cientista que até chegou a ser contatado pelos criadores do abaixo-assinado, mas não quis assiná-lo, foi Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Como o grupo buscava cientistas para opinar sobre o processo de decisão no STF, Zanotto lhes uma lista que incluía o nome de vários pesquisadores envolvidos diretamente com vacinas como sugestão para o grupo. E nesta lista estavam os nomes de Kallás, Kalil e outros cientistas conhecidos.
— Eu achava que era um documento para ser enviado para o legislativo e o STF. Minha intenção foi a de colaborar com uma lista de especialistas em vacina para o governo consultar — disse o virologista Zanotto ao GLOBO. — Houve um engano na redação da carta e nomes foram incluídos de forma equivocada e na pressa. Eles, de fato, fizeram uma grande bobagem.
Segundo o professor, não pareceu haver má fé na iniciativa, e ele não era contrário a todos os pontos do manifesto, ainda que ele tenha se recusado a assiná-lo. Sua surpresa maior é que uma carta que deveria ter sido encaminhada exclusivamente ao STF emergiu de forma pública, com várias assinaturas, num site de notícia.
— Alguns pontos da carta são importantes, como, por exemplo, discutir a obrigatoriedade de vacinas que estão sendo desenvolvidas de forma apressada — disse, ponderando que as correções necessárias às assinaturas acabaram sendo feitas. — Isto foi reparado pelos responsáveis. Não vejo problemas.
O “Jornal da Cidade” publicou nova notícia, excluindo os nomes de cientistas que questionaram o documento, mas a versão inicial da carta continuou circulando em redes sociais. Kallás afirma que, mesmo que não tenha havido má intenção, algum dano foi provocado.
— É uma violação ética muito grave e pode ser tipificada como crime — disse. — Ou isso foi feito com má intenção por alguém que está querendo os holofotes, ou foi feito com um desleixo tremendo.
O GLOBO tentou contato por e-mail e telefone fixo com Akemi Shiba, mas a médica não respondeu até a publicação desta notícia. [Capa: Mario Tama/AFP]