O governo Bolsonaro quer abrir o Fundeb, fundo que financia a educação básica, para escolas privadas sem fins lucrativos, incluindo confessionais (vinculadas a igrejas e religiões) e comunitárias (instituídas por entidades com representantes locais, a exemplo de grupo de pais ou professores).
A ideia é estabelecer um teto de 15% do total das matrículas do ensino fundamental e do médio que poderão ser custeadas em instituições privadas filantrópicas com dinheiro do fundo público. Hoje, é vedado usar o recurso para financiar estudantes nessas etapas escolares fora da rede estatal.
Aprovado em agosto pelo Congresso, o novo Fundeb tem seu projeto de regulamentação em tramitação na Câmara seguindo as regras atuais, de permitir o repasse do fundo a escolas privadas apenas para etapas ainda não plenamente atendidas na rede pública: creches, pré-escola, educação especial e do campo.
A proposta do governo atende parcialmente ao pleito de entidades religiosas que intensificam a pressão para que escolas confessionais tenham acesso pleno ao Fundeb.
Na última segunda-feira (5), evangélicos e católicos se reuniram em São Paulo com Jair Bolsonaro e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, para pedir que a regulamentação do Fundeb inclua o financiamento de alunos de todas as etapas e modalidades nas instituições confessionais e comunitárias filantrópicas. Não ter fins lucrativos é condição para receber os recursos do fundo, em qualquer hipótese.
Segundo Dom Carlos Garcia, bispo auxiliar de São Paulo e vigário episcopal para a Educação e a Universidade, Bolsonaro indicou que Damares e o ministro da Educação, Milton Ribeiro, construiriam um “texto possível” para sugerir no âmbito da regulamentação. Ele classificou a reunião como “muito produtiva” e nega que o pleito seja uma forma de “privilegiar” as escolas confessionais, já que trataram também das demais instituições abrangidas.
Os grupos religiosos argumentam que a Constituição, no artigo 213, já prevê a possibilidade de repasses de dinheiro público a essas escolas sem restrições sobre etapas ou modalidades, mas que as regulamentações ao longo do tempo vêm impondo limitações. Apontam ainda que as famílias têm direito de escolher o formato de educação dos filhos e os valores ensinados, o que seria possível pelos colégios ligados às igrejas.
“Os recursos públicos provêm de impostos que as famílias pagam; logo, não se trata de dar dinheiro público para escolas confessionais; antes, o objetivo é democratizar ao máximo o uso e a administração de tais recursos”, afirmou Dom Carlos Garcia, em entrevista por escrito.
Migração para particular
Antes mesmo do encontro de Bolsonaro com as lideranças religiosas, o governo começou a articular com o Congresso a possibilidade de usar o dinheiro do Fundeb no ensino fundamental e médio, mas com o teto de 15% do total de matrículas. O objetivo seria evitar uma “privatização” exagerada nessas etapas. O temor é que, sem qualquer limitação, haja uma migração desenfreada de matrículas da rede pública para a particular.
Integrantes da área técnica da Esplanada que se debruçam sobre o tema dizem desconhecer a interferência de grupos religiosos na proposta, apontando razões de ordem prática. A permissão com um teto, de forma “controlada”, possibilitaria que estados e municípios gerenciem os impactos da redução futura de alunos devido à transição demográfica, evitando, por exemplo, abrir turmas ou fazer contratações com pouco de tempo de vida útil ou, ao não adotar tais medidas, lotar salas de aulas.
O deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), que deve relatar a regulamentação do Fundeb na Câmara, afirma que ainda não definiu se atenderá à proposta do governo. Ele disse que pretende ouvir os governadores sobre o tema, já que muitas redes estaduais têm interesse em convênios com instituições privadas para ofertar o novo ensino médio, após a reforma da etapa que envolveu reformulação curricular e aumento de carga horária.
Debate com viés moral
Líder de Relações Governamentais do movimento Todos pela Educação, Lucas Hoogerbrugge ressalta que a oferta pública do ensino fundamental e médio está praticamente universalizada no país e que só faz sentido discutir repasse de verbas para o setor privado nessas etapas em casos específicos. Ele aponta o exemplo da demanda de escolas profissionalizantes para serem cobertas pelo Fundeb.
— O debate é meritório nesse tipo de caso, pois por um lado você tem a possibilidade de aumentar a oferta, e, por outro, há o risco de precarização, de conseguir abrir as vagas, mas sem qualidade. O que não se justifica é debater dentro de uma avaliação moral — afirma Hoogerbrugge, referindo-se a aspectos defendidos para o financiamento público de escolas confessionais.
As instituições privadas que poderão receber recursos do Fundeb, segundo o projeto de regulamentação que tramita na Câmara, precisam comprovar finalidade não lucrativa e aplicar seus excedentes financeiros em educação. Elas também têm que oferecer igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e atendimento educacional gratuito a todos.
Há um outro projeto para regulamentar o Fundeb que está no Senado, mas o governo mira o da Câmara para fazer as modificações, pois acredita que partirá dos deputados a matéria que avançará mais rápido.
O texto do Senado é ainda mais restritivo na lógica de que recursos públicos devem ser encaminhados a escolas públicas, colocando como exceção, por no máximo seis anos, o financiamento de alunos na rede privada nas etapas de creche, educação especial e educação do campo. A redação atual da proposta na Câmara permite, além dessas fases, a pré-escola.
Em nota, o Ministério da Educação informou que “a ampliação dos segmentos alcançados pela distribuição dos recursos do Fundeb, no que se refere a essas instituições, necessita de uma análise que leve em consideração as necessidades das redes de ensino sobretudo dos Estados e dos Municípios”. A pasta não respondeu se apoia o pleito dos segmentos religiosos que pedem novas regras, mas reforçou que a Constituição prevê essa possibilidade de financiamento.
A Casa Civil, que encabeça a articulação com o Congresso, foi procurada, mas não respondeu aos questionamentos do GLOBO. O Ministério da Economia respondeu que “não vai comentar” o tema. [Foto de capa: Pablo Jacob/Agência O Globo]