“Não sejamos ingênuos: não se trata de uma simples luta política; essa é a pretensão destrutiva do plano de Deus”. Era o que o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, dizia sobre a lei que criava o casamento igualitário na Argentina, durante o governo de Cristina Kirchner.
Segundo ele, não se tratava de “mero projeto legislativo”. “Este é somente o instrumento, de um movimento do pai da mentira (o diabo) que pretende confundir e enganar os filhos de Deus.
” Ou seja, era o próprio diabo quem estava nos bastidores, movendo os fios de suas marionetes, os políticos argentinos. “Aqui também está a inveja do demônio pela qual o pecado entrou no mundo, que procura destruir a imagem de deus: homem e mulher que recebem o mandamento de crescer, multiplicar-se e dominar a terra.”
Era 2010. Três anos depois, Bergoglio se tornou o papa Francisco. E logo em sua primeira viagem as coisas pareceram mudar.
Papa Francisco voltava da Jornada Mundial da Juventude, no Brasil, quando foi questionado novamente sobre o tema. Disse então: “Deve-se distinguir o fato de que uma pessoa é gay do fato de fazer um lobby. Se é lobby, nem tudo é bom. Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”
A mudança de comportamento significou na época uma virada do ponto de vista da pastoral do pontífice. Tratava-se de acolher os gays e não de rejeitá-los, ainda que isso não levasse a uma mudança no comportamento da Igreja em relação aos seu passado e aos seus dogmas.
Agora, o papa Bergoglio faz uma caminho que parecia já ter sido anunciado no começo do ano por outros de seus importantes colaboradores.
A favor do reconhecimento da união civil entre homossexuais, os cardeais Walter Kasper e Gualtiero Bassetti, presidente da poderosa Conferência Epicopal Italiana (CEI), já se haviam manifestado.
Além deles, houve a concordância do bispo Marcello Semerano, recentemente nomeado para a Congregação da Causa dos Santos no lugar do cardeal Angelo Becciu, que renunciou ao cargo depois de um escândalo financeiro envolvendo fundos do Vaticano.
No ano passado, Francisco havia promovido a cardeais alguns nomes abertos à causa no Vaticano. Entre eles, o italiano Matteo Zuppi. Ele também recebeu em audiência o padre jesuíta americano James Martin, que trabalha com atendimento de grupos LGBT católicos.
Martin definiu como “histórico” o pronunciamento do papa na entrevista do documentário Francesco. “O que faz dos comentários do papa à união civil do mesmo sexo tão relevante? Primeiro, ele dizer isso como papa, não como arcebispo de Buenos Aires. Segundo, está claramente apoiando, não simplesmente tolerando, a união civil. Terceiro, está dizendo isso em frente às câmeras, não em privado”, escreveu no Twitter.
No documentário. A mudança de agora não é uma surpresa só para a Cúria, mas sim para a história do papado – ainda que temas como os direitos decorrentes da união civil, como à adoção, não estejam claros em sua declaração.
O apoio à união civil aparece na metade do filme do americano de origem russa Evgeny Afineevsky, que em duas horas investiga as questões que mais preocupam Francisco em seus sete anos de pontificado, incluindo meio ambiente, pobreza, migração, desigualdade racial e de renda. No filme, Francisco se refere ao caso de Andrea Rubera, pai de três meninos e casado com um homem.
Rubera mandou uma carta ao papa na qual explicava querer educar os filhos na fé católica, mas afirmou que não sabia como seria recebido em sua paróquia. Francisco telefonou para o pai e o aconselhou a procurar a paróquia, mesmo que haja resistências. E assim fez o homem.
Outro depoimento apresentado é o do chileno Juan Carlos Cruz, vítima e ativista contra os abusos sexuais. “Quando conheci o papa Francisco, ele me disse que sentia muito pelo ocorrido. Juan, foi Deus quem te fez gay e em todo caso te ama. Deus te ama e o papa também te ama.” (Colaborou Felipe Frazão)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.