Assim que começou a quarentena para combater a pandemia, em março, a comerciária Marion Aramaqui foi afastada do trabalho. Com 60 anos e asmática, faz parte do grupo de risco. Mas ela não conseguiu retomar suas funções na loja, que já voltou a funcionar em São Paulo. Mês passado, foi demitida.
— Fui chamada no RH e me disseram que, pela incerteza da pandemia, estavam dispensando aqueles que estavam afastados, incluindo uma colega de trabalho também de idade que tem problemas de coração. Ali caiu a minha ficha: quando a gente chega a uma certa idade, é como se fosse ignorado. É um sentimento de rejeição — lamenta Marion.
O preconceito de idade, que já existia com os idosos, vem se agravando com a Covid-19. Pela letalidade maior à doença — 75% dos óbitos acontecem entre quem tem 70 anos ou mais —, eles são vistos pelo mercado de trabalho como vulneráveis e mais suscetíveis a afastamentos.
Os números mostram que, se antes da pandemia a geração de vagas já era menor para maiores de 60 anos, agora a situação se agravou, com mais demissões do que contratações nessa faixa etária. Em agosto, foram geradas 263,7 mil vagas com carteira para quem tem abaixo de 60 anos e eliminadas 14,3 mil entre os mais velhos, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério da Economia.
Os dados foram reunidos pelo sociólogo Ian Prates, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Segundo ele, 71% dos idosos estão no setor de serviços, o mais afetado pelo distanciamento social, contra 55% entre os mais jovens. Isso dificulta ainda mais a geração de emprego formal para os trabalhadores mais velhos:
— A retomada no mercado formal já começou, embora bastante tímida. Para os idosos, no entanto, o saldo continua negativo. Uma tendência que já vinha no mercado formal e que se intensificou com a pandemia.
Lacuna no conhecimento
A pesquisadora Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e especialista na situação dos idosos, diz que eles foram triplamente afetados pela Covid-19. Além da letalidade maior, sofrem no mercado de trabalho e são obrigados a ficar no isolamento:
— Idoso livre viajando, passeando, namorando, indo a bailes, tudo isso acabou. Ele está confinado, preso. Se já sofria preconceito no mercado de trabalho, está sofrendo ainda mais. Criaram até memes depreciativos sobre os idosos.
Ana Amélia diz que 600 mil trabalhadores com 60 anos ou mais deixaram a força de trabalho, ou seja, foram para a inatividade, entre o fim de 2019 e o segundo trimestre de 2020. E mais 605 mil foram demitidos:
— Os que estão saindo agora do mercado de trabalho não voltam. Quando houver uma vacina, vão estar mais velhos com uma lacuna no conhecimento. Se isso acontece com os jovens, imagina com os idosos.
A exclusão digital se torna outro obstáculo, principalmente com muitas empresas adotando o trabalho remoto. Apenas 38,7% da população de 60 anos ou mais acessavam a internet antes da pandemia. Quase metade da média brasileira, de 74,7%.
— A questão tecnológica é importante não só pelo trabalho, mas para a comunicação com a família, na participação dos eventos sociais que viraram virtuais, na telemedicina, nas compras. A inclusão digital precisa aumentar para evitar que a desigualdade cresça ainda mais em relação aos idosos — alerta Ana Amélia.
Prates afirma que falta uma política de aprendizado durante os diferentes ciclos de vida, para evitar a exclusão dos mais velhos do mercado de trabalho. A reforma da Previdência aprovada em 2019 estabeleceu idade mínima para aposentadoria de 65 anos para os homens e de 62 anos para as mulheres, o que impõe mais tempo em atividade.
— Já existia uma discriminação anterior à pandemia, mas, com a doença, isso aumentou. Não existe uma política de aprendizagem de longo prazo, ao longo do ciclo de vida. Isso não existe.
Prates lembra ainda da importância da renda dos idosos para a família:
— Os idosos têm papel muito importante no sustento dos mais jovens.
Essa piora no mercado de trabalho vai tornar essa faixa etária acima dos 60 anos ainda mais desigual. Segundo Prates, ela se caracteriza por estar nas duas pontas da distribuição. Os que estão no topo, em cargos de chefia, e os que estão na base, trabalhando na informalidade, em serviços que exigem pouca qualificação. Nesses setores, a crise econômica provocada pela pandemia foi mais severa, explica o sociólogo:
— Há uma parcela de informais que não pode fazer as atividades, ou não deveria por causa do contágio. Os idosos são preteridos em relação aos mais jovens, inclusive no mercado informal, onde não há o custo trabalhista associado.
Mais mulheres demitidas
A doméstica e cuidadora de idosos Serrat Moura, de 60 anos, e o segurança Carlos Alberto de Moura, de 63 anos, foram demitidos antes da quarentena e agora não conseguem mais emprego. Ela foi dispensada no fim de 2019, e ele, em janeiro deste ano. De lá para cá, o casal, que mora de aluguel, sobrevive com a aposentadoria de um salário mínimo de Serrat, que não cobre todas as contas.
— Fico chateada porque eu quero trabalhar e não consigo. Está muito difícil. Quando o patrão comunicou que precisaria me dispensar, eu chorei. Aos poucos fui ficando depressiva, mas não posso me permitir ficar assim. Até hoje estamos procurando emprego e distribuindo currículos. Tenho fé em Deus que vou conseguir. Enquanto isso, o jeito é pedir empréstimo. Assim a gente vai sobrevivendo — lamenta Serrat.
O trabalho doméstico, como o de Serrat, foi um dos mais afetados pela crise. E essa é a principal profissão das mulheres com 60 anos ou mais, ocupando 13,3% delas. Somada às auxiliares de serviços gerais e cozinheiras, essa parcela sobe para 22%, quase um quarto da mão de obra feminina nessa faixa etária. Entre maio e julho, cerca de um milhão de trabalhadoras domésticas ficou sem emprego, queda de 16,9%. A situação é pior quando a comparação é feita com 2019: 1,7 milhão a menos na atividade.
A economista da UFF Hildete Pereira de Melo, estudiosa das questões de gênero e do trabalho doméstico, prevê uma queda ainda maior das vagas nesse tipo de serviço:
— O empobrecimento da classe média, base de contratantes de empregadas domésticas, diminui a demanda pelo serviço. Esses empregos não voltam tão fácil.
Entre os 605 mil que perderam o trabalho entre o fim de 2019 e o segundo trimestre de 2020, 61,4% foram mulheres.
João Saboia, professor da UFRJ, diz que a crise pode estar incentivando que os mais velhos tentem se aposentar. A comerciária Marion Aramaqui acredita que ter conseguido se aposentar pode ter antecipado sua demissão:
— Eu tinha planos, queria continuar trabalhando. A aposentadoria não é suficiente para o sustento. Para eles, você não é útil, mas você come, veste, toma remédio. Como bancar tudo isso sem renda? [Foto de capa: Edilson Dantas/Agência O Globo]