‘Me envergonharia se fosse a favor’, diz mãe de Solberg

Isabel do Vôlei é um mulherão. Não só na altura de um e oitenta ou na risada poderosa, mas na postura. Fez 60 anos na pandemia. Solteira, depois de tantos maridos e amores. Saiu de sua casa com jardim na Gávea — “não preciso de tanto espaço” — para quarentenar num apartamento no Jardim Botânico. Reduziu custos e aumentou leveza. Pano da Tailândia na parede, piso de taco e sacada para a mata. “Um astral meio anos 80”, diz, por chamada de vídeo, usando bata indiana e short jeans. Em duas horas, Isabel fuma quatro cigarros e, quando me mostro surpresa, reage rápido. “Cigarro não tá com nada, é uma merda, voltei na pandemia, mas vou parar de novo no ano que vem”.

Isabel diz que abandonou vestidos curtos. Mas não precisaria, com aquelas pernas infinitas e ágeis. Sua versão 2020 está em ebulição, “horrorizada” com o Brasil vulgar, preconceituoso e autoritário de Bolsonaro. A potência das cortadas, a visão do adversário da vez e o espírito de equipe continuam intatos. Só foram transferidos das quadras onde ganhou títulos nacionais e mundiais para o exercício de mãe coragem. Foi assim quando o filho e campeão de vôlei de praia Pedro Solberg foi acusado injustamente de doping. E agora, quando a filha Carol Solberg sofreu ameaça de ser suspensa e multada em até R$ 100 mil por gritar “Fora, Bolsonaro”, após premiação em vôlei de praia.

Isabel ficou aliviada porque não houve punição. Mas protestou contra o “puxão de orelha” do presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, Otacílio Soares de Araújo. Achou o gesto “paternalista e censor”. A atleta não disputa nada há décadas. A não ser o espaço para se posicionar.

Maria Isabel Barroso Salgado mantém a base firme. Sua vida renderia um livro. Aos 27 anos, já era mãe de quatro filhos, de três homens diferentes. Competiu grávida. Chegou a casar de branco. Aos 55, adotou um adolescente, Alison. Hoje, é avó de cinco meninos. Briga pelo Rio, por justiça e liberdade. É passional em carta aberta a Bolsonaro contra o desmonte da cultura ou em crítica a uma postagem racista da ex-colega Ana Paula Henkel. Ela saca, ataca, bloqueia, levanta a bola e recebe sem piscar. Até o vento sabe disso e tenta competir. Isabel posou para esta reportagem na Lagoa Rodrigo de Freitas. Queria evitar ambiente fechado porque o filho Pedro acabara de ter Covid-19. Uma ventania rebelde poderia ter inviabilizado a sessão se não fosse Isabel quem é: uma força da natureza.

Como você se sentiu com o resultado do julgamento da Carol?

Fiquei feliz porque ela está liberada para jogar. Esse é um sentimento que conheço bem. Fui atleta. Ser impedida de jogar é muito duro, ainda mais por algo que não é razoável e no meio de uma pandemia.  Atletas convivem com risco de uma contusão. Mas isso? Fiquei chocada com a fala do Otacílio, um equívoco só. “Puxar orelha” é infantilizar o atleta. É reprimir. E a Carol naquela hora tinha que ouvir e não responder “olha como fala, sou uma mulher de 32 anos, sou mãe”. Ele ainda a chamava de “senhorita”. Mas agora ela decidiu recorrer ao Tribunal Pleno, por não aceitar a advertência, que na verdade é censura disfarçada.

O que achou do “Fora, Bolsonaro” de sua filha?

A manifestação da Carol foi pra lá de lícita e legítima numa entrevista. Eu estranharia se fosse diferente. Eu me envergonharia se ela berrasse a favor de um torturador. Ou enaltecendo uma pessoa que agiu covardemente contra outros. Ou se ela fosse homofóbica ou racista. Eu me orgulho de meus filhos. Do caráter bacana deles. Eu estranho a indiferença das pessoas diante do que está acontecendo no Brasil. Na nossa cara.

Isabel entre as filhas Carol e Maria Clara, em 2016 [Foto: Fernando Young]

O mundo do esporte é meio alienado?

Não me sinto militante de nada. Sou uma pessoa que aprendi na minha casa, graças a Deus, a olhar para a dor do outro. Não dá pra achar graça na vida quando o Pantanal e a Amazônia estão queimando, e quando há tanta violência nas comunidades. Acho que alguns atletas gostariam de se manifestar, mas existe toda uma repressão, toda uma estrutura que veta a participação. Em qualquer meio há retaliações. Eu entendo o silêncio de alguns porque não têm como pagar o preço. Mas de outros, eu lamento. É como se dissessem aos atletas. Atue, jogue e não se manifeste em nada. É patético. Olha só o basquete americano, a NBA. Eles não passam o tempo todo dando recado. Mas se negaram a jogar. Trouxeram à tona, sem véu, o racismo e a violência policial contra negros nos EUA.

Por que escreveu uma carta contra uma postagem da ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel?

Um belo dia, ela fez uma postagem que achei muito equivocada sobre os negros. Ela mora nos Estados Unidos, apoia o Trump, e decidi escrever para mostrar que acho inadmissível o racismo. Ela deve ter lido, espero que sim, uma pessoa que tem tantos seguidores, mas acho que não adiantou nada, não vai surtir efeito. A palavra perdeu o sentido no Brasil. Ser democrata é mandar repórter calar a boca? Um presidente prega desobediência civil para as pessoas não usarem máscara ou não tomarem vacina! Isso é deturpar o significado de desobediência civil.


“O atleta tem uma carreira muito curta. Vive confinado em sua vida profissional. Os militares sempre estiveram muito presentes no esporte. Mas é preciso reagir”

ISABEL SALGADO

Ex-jogadora de vôlei


Por que lançou o  #esportepelademocracia, em junho?

Foi uma tentativa de ter mais um segmento se manifestando contra um Brasil inimaginável, absurdo. Mas a adesão dos atletas é um pouco o retrato do que é o esporte no país. Não temos tradição de questionar. O atleta tem uma carreira muito curta. Vive confinado em sua vida profissional. Os militares sempre estiveram muito presentes no esporte. Mas é preciso reagir. Eu estou horrorizada com tudo. Não estou aqui pleiteando que o esporte seja de esquerda ou de direita. Mas não respeito quem defende a tortura. Não é uma questão partidária, mas humana. Acho que o esporte tem um papel significativo na sociedade. Não só de inclusão social. O esporte é uma expressão do homem. Quando você joga, em campo, dividindo, você está falando um pouco do que você é.

De onde tirou coragem para, aos 22 anos, ir ao microfone e mandar o público que lotava o Ibirapuera parar de jogar objetos em quadra?

Eu odeio covardia desde pequena. Ter um gesto covarde é até humano diante de certas situações. Mas contra alguém? Interromper o jogo contra as japonesas dessa forma, mesmo que nos favorecesse, estava errado. Tem um filme sueco (‘Força maior’, do diretor Ruben Östlund) em que o sujeito está na varanda numa estação de esqui com a família clássica, escandinava, tomando café da manhã e de repente vem uma avalanche de neve que vai matar todo mundo ali. E o pai pega o celular e deixa os filhos para trás. E a mulher agarra os filhos para protegê-los. Resumo da ópera: a neve para, exatamente antes de atingir a varanda. E o pai precisa se confrontar com o olhar dos filhos por tê-los abandonado. Mas ele pegou o celular. Até que ponto foi um instinto primitivo de sobrevivência? Ah, mas ele pegou o celular. No dia seguinte, é aquele constrangimento. Estou contando isso para a gente pensar. Tem coisas que nos envergonham.

Uma vez você deu bronca no técnico japonês que deu soco em uma jogadora numa excursão pela Ásia…

E tomei um esporro da comissão técnica, que achava que eu não tinha que me meter. Isso deveria ser o normal. Uma pessoa está apanhando, você precisa reagir. Mas a gente vive um tempo em que as pessoas se juntam para dar porrada em alguém e acham bacana. As pessoas nas redes se escondem para falar barbaridades. Certos comportamentos aviltam a natureza humana. O homem foi capaz de coisas horrorosas como a escravidão. E agora, tanta omissão diante dos refugiados na Europa.

Tem algum arrependimento na vida?

Fiz muito mal feito um período de História na faculdade, porque já jogava vôlei desde os 11 anos. Sou filha de professora. Ela valorizava o ensino. Para seu desgosto, caí fora. Hoje, se eu pudesse voltar atrás, não teria concluído meu curso de História. Mas lamento não ter estudado um instrumento musical. Lamento não ter aproveitado o francês que minha mãe ensinava. Não ter lido os livros que minha mãe insistia para eu ler. Mas aí eu estava na praia. Eu me arrependo de não ter namorado mais na juventude. Mas não carrego isso como um fardo, eu olho para a frente. Joguei seis temporadas fora do Brasil, três no Japão, três na itália, sempre fui com meus filhos. Eu queria ter tido experiência de morar fora um período mais longo sem jogar.

Já contestava quando criança?

Éramos uma família estimulada a argumentar e dialogar. Meu pai era o único homem. Na casa eram minha avó, minha mãe e quatro filhas. Desde cedo a gente ia no quarto de minha avó, a gente falava, perguntava, dava pitaco. Minha avó nasceu em 1902, e já era jornalista aos17 anos com pseudônimo, Leda Rios. Aos 20 já tinha peça de teatro encenada em Portugal. E eu ouvia falar de dramaturgos, atores e poetas como Procópio Ferreira, Manuel Bandeira. Só vim a saber mais tarde quem eram. Nunca fui intelectual.

Você se casou de branco aos 17, com o primeiro marido. Aos 27, já tinha quatro filhos, de três homens diferentes. O cineasta Ruy Solberg foi um longo casamento. Achou que seria para sempre?

“Pra sempre” são só meus filhos. Mas quando você consegue preservar os laços verdadeiramente sinceros e bacanas com quem você amou, a cumplicidade, é muito positivo. Aconteceu com Ruy e também com o (tenista) Thomaz Koch.

Isabel fez 60 anos na quarentena: ‘As perdas não são só estéticas’ [Foto: Leo Aversa]

Como foi fazer 60 anos na pandemia?

Nunca me assustei com a idade. Quando eu fiz 30 ou 40, achava que aquela idade combinava comigo. Quando eu fiz 50, confesso que tive a sensação básica de ter entrado no segundo tempo. Não queria jogar mais nada pra baixo do tapete e fui fazer análise. Para não malocar nada de mim mesma. Fiz nove anos, mas na pandemia parei, fazer online não me interessava. Terapia não é bate-papo.

Mas e os 60 na quarentena?

As perdas não são só estéticas. Meu joelho estava ótimo, piorou à beça confinada em casa. Eu estava lendo na cama a autobiografia da Susan Sontag e o livro é tão pesado que arrumei problema no pulso (risos). Tendinite. Perdi meus óculos. Perder a capacidade de ler sem óculos ao envelhecer é muito ruim. E eu fiquei só com óculos mequetrefes de camelô, com esparadrapo. Porque estava tudo fechado. Finitude e vulnerabilidade são da vida, ok. Mas escutar todo dia que você passou a fazer parte de um grupo de risco e será preterida se precisar de um respirador é dose.


“Prefiro uma taça de vinho para relaxar. Nunca um antidepressivo. Viajava com uma caixa de Rivotril na bolsa caso acontecesse algo com o avião e eu ficasse presa dentro. O remédio acabou perdendo a validade sem eu tomar nenhum”

ISABEL SALGADO

Ex-jogadora de vôlei


Passou a pandemia solteira?

Solteiríssima. Acabei um namoro ligeiro pouco antes. Se você está bem casado, a pandemia pode ser um grande presente. Mas se está mais ou menos, pode ser um desastre. É muito difícil viver com uma pessoa 24h por dia. Seria mais legal, claro, se eu tivesse um parceiro inteligente, se ele cozinhasse seria melhor, se gostasse dos serviços domésticos melhor ainda, e se ouvisse as músicas que eu gosto e me apresentasse novas músicas e tocasse um instrumento, perfeito. Eu tive uma experiência de morar sozinha no Japão treinando uma dupla masculina de vôlei de praia. Cozinhar, ir a restaurante, cinema. Tudo só. Houve desastres naturais, terremotos, tufões. Era um pouco de confinamento e sem ninguém do lado para você proteger ou para te ajudar. É difícil viver coisas especiais e não compartilhar um livro, um filme, uma comida. Mas tristeza não é um sentimento meu. Prefiro uma taça de vinho para relaxar. Nunca um antidepressivo. Lembro que viajava com uma caixa de Rivotril na bolsa caso acontecesse algo com o avião e eu ficasse presa dentro. O remédio acabou perdendo a validade sem eu tomar nenhum.

Você adotou o Alison, um jovem negro de 13 anos, quando já tinha 55 anos.  Ele está com você agora?

Eu sempre quis adotar. Sabia que o Alison era negro. Mas para mim era indiferente. Havia espaço em mim para adotar outro filho. Não amei o Alison direto, quando olhei para a cara dele. Não o conhecia. Foi uma relação construída. De prazer, diálogo e as cobranças normais que toda mãe faz mesmo. Mandei para a Inglaterra estudar inglês. Na pandemia, Alison ficou três meses na minha casa com a namorada, mas agora mora na casa da família dela. Está com 19 anos, vai fazer vestibular em janeiro, trabalha com produção. Sou muito ligada nos meus filhos, e vi com prazer a barriga crescer, mesmo sendo uma atleta e competindo. Tinha 19 anos quando levei a primeira filha, Pilar, com um ano para Modena, Itália. Fui pelo vôlei para o Japão com meus quatro filhos, a cozinheira e o filho dela. Estar em família sempre me estimulou.

Como viveu o falso doping do Pedro em 2011?

Foi um pesadelo. Pedro me ligou de Moscou dizendo que um teste havia dado positivo para esteroide e eu só repetia “ele não se dopou, ele não se dopou”. Foram tempos de angústia, ele perdeu prova para Olimpíada, tivemos que estudar, pesquisar, viajar, chamar bioquímicos de fora até que um laboratório credenciado na Alemanha apontou os erros do laboratório brasileiro, que foi suspenso seis meses. Nunca fomos ressarcidos. Foi um absurdo. Muito triste e injusto. Se dopar é crime, mas chancelar um erro ou acobertar um erro de um laboratório é crime até maior.

O que sonha fazer até 100 anos?

Eu gostaria de viver até o dia em que eu puder continuar andando para dar um mergulho. Aí alguém vai dizer, mas que bobagem. Não é. Eu sinto falta. Amo o Rio, mesmo com suas mazelas. Posso morar fora e sempre volto. A geografia, a maresia, as montanhas. Entrar no mar. Aquele lance que o Ferreira Gullar falou quando estava morrendo, eu entendi tanto. Ele disse para a filha algo assim “me leva para dar um mergulho no mar de Ipanema em frente às (Ilhas) Cagarras”… Gostaria de viver para ver meus netos crescer. E você pode me questionar. “Esse desejo é só no outro, não é seu?” Não, esse desejo é meu também. Tenho um lado de avó clássica, adoro quando o João passa aqui e grita: vó, vou dormir aí hoje. Muito bom ter esses caras do meu lado, João, José, Francisco, Salvador, Joaquim, todos meninos  e tão divertidos. Um viaja e volta contando histórias. O outro discute o Trump. E aí lembro como minha avó foi importante para minha formação. [Capa: Leo Aversa]

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