Nesta quinta-feira (20), de passagem pela cidade de Bacabeira, no Maranhão, o presidente Jair Bolsonaro experimentou o famoso Guaraná Jesus, a bebida rosada que orgulha o estado do Nordeste, e disse: “Agora, eu virei boiola igual a maranhense, é isso? Olha o guaraná cor-de-rosa do Maranhão aí, ó. Quem toma esse guaraná vira maranhense”. Apesar de ser cor-de-rosa, o Guaraná Jesus foi criado por um vermelho: o farmacêutico Jesus Norberto Gomes era comunista, além de ateu, patrono das artes e louco por carnaval. A história de Jesus, aliás, vai virar filme.
— A declaração homofóbica de Bolsonaro deve servir para colocar ainda mais em evidência o pensamento progressista do inventor do Guaraná Jesus — disse a produtora carioca Fernanda Kalume, da Kalstoï, que está tocando o projeto.
Juntamente com Ben-Hur Real, da produtora maranhense 10Dobro Prod, ela trabalha num documentário sobre a vida e o legado do homem que, em 1927, criou uma “bebida gasosa de suave e fino paladar”, que, informava o rótulo, prevenia o “cansaço físico” e era eficaz no tratamento das “depressões causadas pelas bebidas alcoólicas”.
— Ou seja, era ótimo para a ressaca — brincou Fernanda.
Já dono da farmácia, Jesus importou da Alemanha uma máquina de água gaseificada e começou a produzir “gasosas”. Ateu, ele não permitia que seus funcionários repetissem a expressão “graças a Deus”, mas distribuía os lucros com os trabalhadores e já pagava 13º salário muito antes de virar lei.
Apesar de nunca ter se filiado ao Partido Comunista, Jesus era de esquerda e chegou a ser preso após a Intentona Comunista, uma tentativa de insurreição revolucionária, capitaneada por aliados da União Soviética, que fracassou em 1935. Jesus também era um mecenas: dava dinheiro a artistas e era proprietário de um pequeno acervo de obras de arte. Faleceu em 1963, aos 72 anos. Em 2001, a Coca-Cola comprou a marca Guaraná Jesus.
‘Bolsonaro é o contrário de Jesus’
Fernanda pôs na cabeça que produziria um documentário sobre Jesus no dia 5 de janeiro de 2019, após um longo voo do Rio a São Luís — ela tem raízes em Balsas, no sul do Maranhão. No avião, ela se sentou na mesma fileira de duas senhoras e passou toda a viagem conversando com elas. Quando estavam prestes a pousar, uma delas contou que era neta de Jesus e estava levando a mãe para visitar os cenários de sua infância maranhense.
— A gente passou o voo todo falando de política, de cinema, da nossa paixão pelo Maranhão, e, quando ela me disse que era neta de Jesus, fiz duas perguntas: “como você só me conta isso agora?” e “Por que não fizeram um filme sobre ele”? — lembrou Fernanda.
A família de Jesus topou o projeto. A bisneta de Jesus, Roberta Gomes, se juntou à produção. As gravações iam começar em novembro, mas a pandemia atrasou o calendário. O filme será dirigido pelo cineasta Frederico Machado. O documentário terá depoimentos em áudio dos antigos funcionários de Jesus, que foram gravados em fitas cassete guardadas pela família. Depois de finalizar o documentário, Fernanda pretende investir numa cinebiografia “no estilo ‘Dois filhos de Francisco’”.
A piada preconceituosa de Bolsonaro escandalizou os produtores.
— Bolsonaro é o contrário de Jesus — disse Fernanda, em alusão à ideologia conservadora abraçada pelo presidente. — Ele não respeita os maranhenses. Para os maranhenses, o Guaraná Jesus é o leite materno. Os nordestinos espalhados por todo o Brasil, quando bebem essa bebida cor-de-rosa, lembram-se de casa.
Ben-Hur Real ressaltou ainda que o comentário do presidente, além de homofóbico, mostra como ele desconhece os costumes maranhenses. Em “maranhês”, “boiola” se diz “qualira”.
Na noite de quinta-feira, em uma live, Bolsonaro ensaiou um pedido de desculpas por sua piada.
— A brincadeira que eu fiz não foi televisão, não. Tava conversando com o cara “Pô, o guaraná é cor-de-rosa aqui”. Falei uns troços lá, alguém pegou, divulgou, não sei o que, como se eu tivesse ofendendo aí quem quer que seja no Maranhão. Muito pelo contrário. Com quem eu tava brincando era um maranhense, que levou na esportiva. Agora, a maldade está aí — afirmou.
O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi ao Twitter anunciar que pretende processar o presidente: “Bolsonaro veio ao Maranhão com sua habitual falta de educação e decoro. Fez piada sem graça com uma de nossas tradicionais marcas empresariais: o Guaraná Jesus. E o mais grave: usou dinheiro público para propaganda política. Será processado”. [Capa: Alan Santos/PR]