O ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica (2010-2015) renunciou ao cargo de senador, retirando-se da vida política ativa nesta terça-feira (20). O político da Frente Ampla de esquerda, eleito senador em 2014, já havia anunciado que renunciaria ao cargo no mês passado, por motivos de saúde.
Mujica, de 85 anos, se despediu do Congresso junto com outro ex-presidente, Julio María Sanguinetti (1985-1990 e 1995-2000), de 84 anos, do conservador Partido Colorado, que também renunciou. Os adversários políticos decidiram abandonar o Senado em uma sessão conjunta na qual trocaram um forte abraço, em gesto classificado por outros parlamentares como um “reflexo da democracia”.
Aplaudido de pé, Mujica fez um emocionado agradecimento aos seus colegas e aos funcionários da Casa. Segundo ele, sua saída não “significa o abandono da política, mas sim o abandono da linha de frente”.
— No meu jardim, há décadas não cultivo o ódio. Aprendi uma dura lição que a vida me impôs. O ódio acaba deixando as pessoas estúpidas — disse o ex-presidente, que passou 13 anos preso durante a ditadura militar. — Passei por tudo nessa vida, fiquei seis meses atado por um arame, com as mãos nas costas, fiquei dois anos sem ser levado para tomar banho e tive que me banhar com um copo. Já passei por tudo, mas não tenho ódio de ninguém e quero dizer aos jovens que triunfar na vida não é ganhar, mas sim se levantar toda vez que cair.
Coronavírus
Em setembro, Mujica revelou que, devido a uma doença imunológica crônica, não poderá tomar uma vacina contra o coronavírus quando ela estiver disponível. Agora, disse que atuará como um “conselheiro” para seus partidários.
— Vou porque a pandemia está me obrigando. Ser senador é falar com as pessoas e andar por todo lugar. Estou ameaçado por todos os lados: pela velhice e por minha doença crônica — afirmou ele.
Pouco antes da sessão, Mujica afirmou que a despedida conjunta com Sanguinetti ocorreu porque após conversarem, perceberam que estavam “na mesma esquina”. Segundo o ex-presidente de esquerda, a simbologia disso é importante para o Uruguai porque, “em outros países, eles [adversários políticos] nem sequer se cumprimentam”.
Sanguinetti, por sua vez, lembrou em uma carta de despedida que sua renúncia já estava prevista desde antes das eleições nacionais de 2019. A decisão, ele disse, foi tomada pela necessidade de se dedicar à Secretaria Geral do Partido Colorado e às suas atividades como jornalista e correspondente editorial.
— Essa é uma hora de conciliação, de reafirmação democrática — disse Sanguinetti, que também foi aplaudido pelo Senado. — Tendo enfrentado Mujica tanto como poderíamos, ele desde uma revolução armada, e eu, desde os governos que a combatiam, hoje podemos dizer, como Octavio Paz, que a inteligência encarna por fim, reconciliam-se as duas metades inimigas e voltam a ser fonte, manancial de fábulas: homem, árvore de imagens, palavras que são flores, que são frutos, que são atos.
Vida simples
Mujica tem uma longa carreira política e de militante: durante a sua juventude, fez parte da guerrilha Tupamaros que lutava contra a ditadura militar no país, participação que o levou à prisão de 1972 a 1985. Em 2018, quando renunciou ao Senado pela primeira vez, disse em uma carta estar “cansado da longa viagem” e que iria se “refugiar na aposentadoria”. Menos de um ano depois, no entanto, candidatou-se novamente e foi eleito.
No poder, acabou ficando conhecido mundialmente por sua postura e vida simples — até hoje, ele se locomove com um velho fusca azul — e por ter feito um governo mais progressista, com a descriminalização do aborto e da maconha, além da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O político também doou grande parte de seu salário na Presidência por considerar que no Uruguai “vivem muitas pessoas pobres”.
A despedida foi marcada por cumprimentos e palavras bondosas de outros senadores. Óscar Pepe, da Frente Ampla, disse que o “ideal de Pepe emociona” porque “dedicar a vida à política tem a ver com injustiças que te aflingem”:
— Viver é ter causas, viver é luta, e por isso o agradecimento de poder viver ao lado de companheiros como Mujica — afirmou.
Sanguinetti foi presidente durante a transição democrática uruguaia, quando foi eleito pelo voto popular em 1985, após 13 anos de ditadura. Em 1995, ganhou novamente as eleições. Há décadas, é uma das principais lideranças do Partido Colorado que, que em seus mais de 180 anos governou por diversas vezes o país. Sua popularidade, no entanto, caiu após o governo de Jorge Batlle (2000-2005), que em 2002 enfrentou uma das maiores crises econômicas do Uruguai. [Foto de capa: Pablo Porciuncula/AFP]