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Não dá mais para empurrar o casamento com a barriga: divórcios na pandemia disparam

Por GQ/GLOBO

Em 2020, nossas relações entraram em xeque. Na esteira das transformações que seguiram àquela fatídica semana de março, quando o Brasil parou, o país viu um salto na busca por informações sobre divórcio no Google (beirando um impresisonante crescimento de 9.900%) e na abertura de processos de separação, de fato. Estaria este aumento ligado à libido?

“Em parte. Mas a própria falta de tesão, por sua vez, também está ligada à consciência crua do tipo de vida que se vive e das relações que foram estabelecidas. Se você estava empurrando um casamento com a barriga, agora não dá mais”, diz Maria Homem, pesquisadora da Casa do Saber, doutora em letras pela USP, mestre em psicanálise e estética pelo Collège International de Philosophie – Universidade Paris 8.

Dona de um repertório tão grande quanto sua sensibilidade, Maria foi das primeiras a levantar a bandeira para os rumos preocupantes do desejo e da das relações em 2020. Ainda em abril, ela dividiu o microfone com o pesquisador e professor Mario Vitor Santos, da FFLCH-USP e da Faap, na live Como Fica o Desejo?. Na edição de outubro da GQ Brasil, ela fala sobre o tema no artigo Um Ano Sem Tesão, que analisa os caminhos percorridos pela libido no mais broxante dos anos. Mas a conversa com ela rendeu insights interessantes sobre o sexo (ou a falta dele) do ponto de vista da psicanálise. [Foto de capa: Reprodução/Filme ‘Her’]

Das conclusões possíveis, resta a impressão de que a libido como a conhecíamos mudou – quer queira, quer não – e no futuro “cada um deverá descobrir o que permitiu (ou não) que tenha sido transformado dentro de si numa vivência tão visceral”. A íntegra da conversa você confere abaixo:

GQ Brasil: Quando falamos de sexo, temos que esclarecer sobre o que estamos discutindo – fala-se sobre desejo, mas também sobre impulso, necessidade, sobre envolvimento e amor. Em meio a tudo isso, onde mora o tesão?

Maria Homem: O tesão mora num território multifacetado e muito singular: o encontro das marcas que se fizeram no corpo e na memória de cada um ao longo de nossa história de vida, sobretudo inconsciente. Lembrando que o inconsciente opera no campo do sexual e do infantil. Desde o início somos um corpo às voltas com sensações de prazer envoltas em palavras e fantasias. O que nos faz tesos é esse curioso e enigmático amálgama.

Isolamento também poderia trazer novos significados à sexualidade segundo pesquisadora [Foto: Getty Images]

GQ Brasil: Em 2020, nossa geração experimentou uma virada sem precedente, que mudou nossos relacionamentos em praticamente todas as esferas da vida. Sendo o sexo uma expressão tão pessoal, ele muda também? Como a psicanálise vê o sexo nesse contexto?

Maria Homem: Uma pandemia é também uma situação de ameaça. A arma que temos é, por ora, o confinamento. Tanto a ameaça que vem ‘de fora’ quanto os conflitos que podem se aguçar ‘de dentro’ são o melhor caldo para que não se possa relaxar e gozar. Muito pelo contrário, estamos no auge da persecutoriedade e da projeção de nossos temores e eventuais frustrações sobre os que vivem conosco. Agora, justamente porque o aqui e agora pode estar difícil, abre-se espaço para fantasiar. Para quem sabe se deixar enredar pelo imaginário além dos limites da realidade.

GQ Brasil: Durante a pandemia, vimos um salto na busca por divórcios (em uma semana de abril, para citar um exemplo, o Google apontou um crescimento de quase 10.000% na busca por ‘divórcio online gratuito’ no Brasil). Você acha que esse aumento está ligado a uma intimidade sexual – à falta de tesão?

Maria Homem: Em parte. Mas a própria falta de tesão, por sua vez, também está ligada à consciência crua do tipo de vida que se vive e das relações que foram estabelecidas. Se você estava empurrando um casamento com a barriga, agora não dá mais, pois você vê o outro e a si próprio de forma mais clara. E não gosta do que vê.

GQ Brasil: Nós falamos das separações dos casais, mas quem ficou sozinho, isolado durante este período, também experimentou mudanças. GQ Brasil: A satisfação, o tesão, é necessariamente uma busca coletiva, de um + um? Buscar o tesão comigo é mais difícil que buscar o tesão com o outro?

Maria Homem: Do ponto de vista subjetivo, digamos, o sexo é paradoxalmente sempre sozinho e sempre com o outro. Isto é, a gente sempre transa com nossas montagens inconscientes em ação, o que nos faz gozar são nossas fantasias e suas personagens. Por isso, sempre se está consigo mesmo no sexo, havendo ou não outros corpos junto com o nosso. Por outro lado, sempre estamos com o outro que habita nossas fantasias, o sexo nunca é onanista. Agora, quando o outro real, diante de mim no sexo, entra na minha cena de forma interessante para ela (a cena), aí temos, mais que sexo, um encontro.

GQ Brasil: Em um episódio conhecido da pandemia, a prefeitura de Nova York publicou uma cartilha de sexo seguro na pandemia – uma cartilha básica (e até meio engraçada) de cuidados, que reconhecia o isolamento como o único “sexo seguro”, mas que admitia os eventuais (e tão comuns) “furos na quarentena” para fim sexual. Será que a psicanálise consegue explicar a assunção de um comportamento de risco pela busca do desejo sexual? Por que um mundo que para não consegue parar de transar?

Maria Homem: Eros, a mais basal pulsão de vida.

GQ Brasil: Ainda falando de furos na quarentena, esse contato sexual episódico dá conta de suprimir uma necessidade maior? A satisfação de uma noite de sexo acalma o desejo ou acalma o impulso?

Maria Homem: Acalma o desejo, o impulso e a alma, que aí pode aguentar um pouco de solidão.

GQ Brasil: Muito se fala hoje em dia do, hoje famoso, Carnaval de 1919, quando o Rio de Janeiro foi liberado da pandemia de Influenza se jogou sem medo em uma celebração sem precedentes. A expectativa por um Carnaval de 2021 segue alta. O tesão é algo tão palpável a ponto de guardá-lo para depois? Existe “tesão a prazo”?

Maria Homem: Claro, aliás essa é a grande estratégia da sedução. Acenar e não entregar.

GQ Brasil: Por fim, queria saber se, em sua opinião, nosso tesão deve mudar após a pandemia (se é que esse fim vai chegar em algum momento).

Maria Homem: Cada um deverá descobrir o que permitiu (ou não) que tenha sido transformado dentro de si numa vivência tão visceral.

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