A pandemia de covid-19 fez com que professores de todo o país trocassem os quadros e as carteiras escolares pelas telas e pelos aplicativos digitais.
Sete meses após a adoção de medidas de distanciamento social e da interrupção das aulas por causa da emergência sanitária, os professores continuam se reinventando.
Nesse período, eles foram obrigados a refazer todas as aulas, passar novos exercícios, escrever apostilas, gravar em vídeo os conteúdos das disciplinas, criar canais próprios em redes sociais, mudar avaliações, fazer busca ativa de alunos e se aproximar das famílias dos estudantes.
Professores de todas as partes do país, tanto da rede pública quanto da privada, relataram à reportagem as diversas mudanças do período e falaram sobre as novas atribuições e papeis dos docentes, em diferentes modalidades da educação básica, vindas com a pandemia e o ensino remoto.
O suporte da mudança foi a internet, mas o episódio não se restringiu a uma revolução digital. Houve uma transformação comportamental dos professores para não perder a conexão com os alunos e manter a aprendizagem.
“A covid-19 antecipou em uns dez ou quinze anos o que iria acontecer em sala de aula”, calcula o professor de geografia, Daniel Rodrigues Silva Luz Neto, que leciona para o ensino de jovens e adultos no Gama, uma das regiões administrativas do Distrito Federal.
Para não perder alunos, ele entrou em contato com todos, adicionou os números dos estudantes no seu WhatsApp, criou grupos por turma, por onde passa áudios e vídeos com aulas e instruções. Seus alunos fazem as tarefas no caderno, tiram foto, mandam de volta para ele corrigir.
“Tivemos que aprender algo que nunca foi desenvolvido ao longo da nossa vida, que foi encarar a tecnologia a curto prazo”, acrescenta Juanice Pereira dos Santos Silva, professora de biologia e ciências da natureza na educação inclusiva, no Centro de Ensino Especial, também no Gama, onde leciona para alunos que tenham transtorno de espectro autista ou deficiência intelectual ou múltipla, desde os 8 anos de idade até a vida adulta.
A professora usa o quintal e a cozinha de casa como cenários das aulas, grava vídeos em movimento nas ruas para ensinar noções de espacialidade e passar conteúdos de suas matérias.
Aprender, em tempo recorde, a usar ferramentas digitais para ensinar foi o primeiro desafio de Juanice Silva. O segundo foi buscar os alunos para a aulas remotas. “No nosso caso, tivemos não apenas que trazer os alunos. Tivemos que trazer os pais”, lembra a professora destacando que a participação dos responsáveis é necessária, em especial, para os alunos que ela leciona. “Tivemos de criar e-mails para os familiares, dar acesso [às plataformas] e treiná-los.”
O trabalho de mobilizar as famílias feito pelos professores da escola de Juanice Silva permite que alunos como Pedro Emanuel Araújo, com síndrome de down, mantenha a rotina de acordar cedo, tomar banho, tomar o café e vestir o uniforme do colégio, como faz questão, para assistir as aulas em vídeo e cumprir a tarefa.
A rotina de Pedro é dividida com o pai que, antecipadamente, verifica os materiais que o filho vai precisar para cada dia da semana e separa na escrivaninha, junto com o notebook.
Segundo a mãe do aluno, Ângela Cristina Moutinho Araújo, em tempos de ensino remoto, o filho melhorou no desempenho de atividades manuais. “Inicialmente, Pedro não sabia fazer os deveres. Com a nossa ajuda [dos pais], ele começou a fazer, hoje tira de letra.”
A dedicação dos professores, o amor dos pais, o computador em casa e o sinal de internet permitiram que Pedro Emanuel continuasse a aprender, apesar de estar longe da escola há 7 meses.
Mas essa não é uma realidade para todos os alunos da rede pública que, em geral, não têm acesso facilitado à internet ou um computador à disposição. Nesses casos, alguns professores têm optado por criar apostilas impressas e fazer as cópias na escola. Os pais ou os alunos têm que buscar toda semana o novo material e deixar na escola os exercícios feitos da apostila passada – o que faz parte da avaliação e das notas dos alunos.
“Sem acesso à tecnologia, eles têm que ir na escola e trabalhar sozinhos”, assinala Eunice Rodrigues Silva, professora de história, e ex-diretora do Centro de Ensino Fundamental 102 Norte, uma escola pública em Brasília que atende predominantemente alunos de 11 a 15 anos.
Em tempos de escolas sem aulas presenciais, Eunice Silva considera primordial o acesso à tecnologia e à conexão. “Acessar a internet é a forma para encontrar o conhecimento com o professor”, diz ao lembrar que muitos alunos em sua escola não conseguiam aprender plenamente porque não tinham computadores, tablets ou smartphones em casa.
Para resolver o entrave, Eunice Silva iniciou uma campanha pedindo doação desses aparelhos.
Hoje, ainda restam dez alunos estudando exclusivamente com apostila impressa, de um total de 484 estudantes da unidade.
O problema, entretanto, não se soluciona apenas com os equipamentos já que muitos alunos não têm internet em casa. “É precário todo o sistema, mas há níveis de precariedade”, descreve. Em sua opinião, a campanha trouxe resultados, mas a escola teve que agir por conta própria por “algo que já deveria ter virado política pública”.
Atividades pelo computador não foram novidade para a professora de matemática do ensino médio da Escola Estadual Amélio de Carvalho Baís, de Campo Grande (MS), Carolina Moraes Lino. Ela costumava passar deveres online para os estudantes. Com a pandemia, entretanto, foi a primeira vez que todo o conteúdo precisou ser transportado para as telas.
Sem a sala de aula como suporte, a sala da casa onde mora com o filho de 11 anos se transformou em escola.
“Eu me deparei com situações que me deixaram muito frustrada”, diz, contando das dificuldades de engajar os alunos e de lidar com todas as incertezas que a pandemia trouxe. “Do mesmo jeito que os alunos ficam desmotivados, tenho muitos alunos que não tinham problemas e [desenvolveram quadros de] síndrome do pânico, depressão, tenho colegas também nessa situação”.
Carolina buscou aperfeiçoar os conhecimentos nos meios digitais, chegou a comprar, com recursos próprios, uma mesa digitalizadora, que permite que ela escreva e resolva as equações necessárias para as aulas de matemática. Ela também precisou organizar o próprio tempo.
“Quando se está em casa se quer fazer tudo ao mesmo tempo: dar aula, lavar a roupa, ver o filho, fazer almoço. Agora, eu consegui me organizar e está sobrando tempo. No começo não sobrava para nada.”
Os estudantes também precisaram de um tempo. Como a situação era muito incerta, segundo Carolina, eles estavam sempre pensando no retorno às aulas presenciais, sem dar muita importância às aulas remotas.
Recentemente, ela tem notado uma mudança de postura, dado que a suspensão deverá se prolongar.
“Pelo menos na minha escola, todos os nossos alunos, cerca de 400, estudam em período integral, todos têm acesso ao material ou impresso ou pela internet. [A dificuldade] não está sendo o acesso, mas a desmotivação da entrega das atividades.”
De acordo com pesquisa do Instituto Crescer, 46% dos educadores não sabem avaliar se os alunos estão realmente aprendendo com as aulas online. Além disso, 57% sentem-se frustrados ao perceber que, por mais que se empenhem, poucos estudantes aproveitam os conteúdos por falta de infraestrutura.
Apesar das dificuldades, Carolina busca motivação nos aprendizados ao longo da jornada. “Uma das coisas que me motiva é que sou pessoa curiosa, poder estar em contato e poder descobrir coisas novas é uma das coisas que me motiva. Além de gostar muito do que eu faço, eu vejo uma possibilidade nessa pandemia, para mim, de me aperfeiçoar mais na parte tecnológica, de descobrir mecanismos ferramentas novas”, diz.
Além dos conhecimentos necessários para lidar com a tecnologia, a pandemia trouxe também a necessidade de se olhar para habilidades socioemocionais, cujo ensino está previsto, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que estabelece o que deve ser ofertado em todas as escolas do país. São habilidades como persistência, assertividade, empatia, autoconfiança e tolerância a frustração.
“O desenvolvimento socioemocional dos estudantes é um aspecto fundamental de ser trabalhado de modo intencional na escola se quisermos uma educação que considere o que é viver, conviver, aprender e produzir no século 21”, diz a especialista em Educação Integral do Instituto Ayrton Senna, Cynthia Sanches.
“Aquela escola que tem como objetivo principal a aprendizagem dos conteúdos das matérias já não é suficiente. Tão importante quanto desenvolver os aspectos cognitivos e interagir com os conhecimentos que a humanidade acumulou ao longo de sua história é o desenvolvimento dos aspectos sociais e emocionais do estudante”, destaca.
A professora de educação física Lizianne Tenório dos Santos tinha acabado de chegar na Escola Claudio Daniel Gama Amorim, em Coruripe (AL), quando as aulas presenciais foram suspensas.
Ela assumiu, este ano, as turmas dos 4º e 5º anos do ensino fundamental e não chegou sequer a conhecer os alunos presencialmente porque a escola estava sendo reformada no início do ano letivo. “Todo o meu contato com eles foi na pandemia, por plataformas de vídeo, por WhatsApp.”
Lizianne não tinha experiência com meios digitais, por isso, recorreu a amigos da área de marketing e design para saber como se portar diante de uma câmera.
“Comecei a brincar e aprender durante a pandemia e a fazer com que os vídeos pudessem ser atrativos para os alunos, para não ser monótono e chato. Educação física é movimento e se eu trabalhasse de uma forma que não tivesse movimento, eles iam achar ruim. Educação física, para eles, é uma coisa fantástica, ficam contando as horas para ter aula e eu não poderia deixar de fazer algo prazeroso.”
A professora passou a usar o WhatsApp para trocar vídeos com os estudantes. Ela traz a teoria, contextualiza o assunto e passa exercícios práticos, que devem ser gravados pelos estudantes e enviados de volta.
A casa de Lizianne precisou ser adaptada. Lá, moram três professoras que também estão dando aulas de forma remota. “Uma tem que estar distante da outra para gravar”, diz. “Quando gravo os vídeos para os meninos, eu desarrumo a sala, adapto aquele espaço porque a luz é melhor, e faço ali a minha quadra”.
A motivação vem das trocas com os alunos. “Ouvi de uma aluna: ‘professora, você traz esportes de outros países, esportes diferentes para a gente conhecer e é muito bom’”, conta, orgulhosa.
Logística e falta de infraestrutura foram os desafios enfrentados pelo professor de biologia Jonailson Xisto para poder chegar até os estudantes das escolas em que leciona, em Barreirinha (AM). Apesar de estar localizada em área urbana, a Escola Estadual Professora Maria Belém não conta com suporte de rede adequado já que a qualidade da conexão da internet na cidade é ruim. Além disso, muitos estudantes não têm smartphone ou computadores em casa, o que dificulta as aulas interativas.
Já a Escola Estadual Antonio Belchior Cabral está localizada em uma comunidade ribeirinha, chamada Freguesia, onde o acesso a meios digitais é ainda mais complicado.
“Logo que começou a pandemia, eu cheguei a dizer que eu não estava realizando o trabalho de professor. Em uma turma de 30 alunos, eu conseguia atender, no máximo, cinco alunos, pela dificuldade no interior do Amazonas”, diz.
Segundo ele, muitos dos estudantes vão para a cidade apenas para cursar o ensino médio, mas suas famílias moram no interior, em locais que chegam a estar a sete horas de viagem de barco da zona urbana.
A solução foi recorrer ao WhatsApp para aqueles que conseguiam acesso à internet. Para os demais, um grupo de professores se juntou para imprimir apostilas com recursos próprios e levar até os alunos. Xisto conta que a carga de trabalho aumentou já que ele está sempre à disposição dos estudantes.
“O atendimento é intenso. A gente sabe que, para os alunos que moram no interior, não é todo tempo que o sinal pega. Há alunos esforçados que vão para outra comunidade no final de semana, onde pega sinal. Recebo mensagens com dúvidas, às vezes, às 3h, às 20h, 22h. Eu sempre falo que estou disponível”, diz.
Não é apenas na pandemia que os desafios de infraestrutura precisam ser enfrentados. Em 2019, os alunos de Xisto foram premiados no Desafio Criativos da Escola, com o projeto Amazônia, um laboratório natural,
que busca driblar a falta de laboratório de ciências na escola usando a própria floresta como local de estudo.
O mesmo projeto foi reinventado na pandemia.
“O nosso quintal é a Amazônia, a gente respira Amazônia. Não posso fazer as aulas formais com os alunos, mas no quintal tem muito conhecimento.
O aluno pode observar as árvores, os animais. Ele observa o inseto interagindo com a flor, o passarinho com a árvore. Essa foi uma das saídas que a gente encontrou, apesar de não poder trabalhar plenamente como gostaria”.
O ano de 2020 reservou muitos desafios para a educação. A continuidade da aprendizagem, entretanto, não pode depender exclusivamente dos esforços individuais dos professores, afirma o diretor-fundador do Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), Ernesto Faria.
Na avaliação dele, é necessário engajamento de toda a rede de ensino e das unidades federativas para que o ensino seja garantido aos estudantes.
“É necessário conseguir fazer um bom acompanhamento de como o ensino remoto tem se dado, de como as aulas têm acontecido, de quais são as dificuldades que os alunos têm enfrentado, quem tem participado das aulas, feito as atividades e quem não tem feito. Acho que tem que haver um bom modelo de gestão, não passa só pela iniciativa do professor fazer algo inovador ou estar próximo dos alunos”, diz.
“Tem que ter sistemático: o professor passa as informações para o coordenador pedagógico ou diretor, o diretor passa para a secretaria de educação e aí é possível visualizar se os alunos estão aprendendo ou não estão. Um bom modelo de gestão faz muita diferença num modelo pré-pandemia, acho que segue valendo agora”, acrescenta.
Com a perspectiva de que o ensino remoto se estenda para o próximo ano letivo, Faria destaca que será preciso oferecer formação aos profissionais. “Há uma nova realidade de que ensino, tecnologia e trabalho a distância vão se tornar mais presentes e vão se tornar uma necessidade. Há uma pauta formativa que precisa de investimento e precisa de olhar e acho que passa por secretarias [de educação] maiores, que têm mais estrutura, ajudar a oferecer formação para as secretarias menores”.
No estudo A Educação Não Pode Esperar, apresentado em junho, o Iede mapeou desafios e alternativas do ensino público durante a pandemia.
Em todo o mundo, de acordo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), mais de 180 países determinaram o fechamento de escolas e universidades, afetando 1,5 bilhão de crianças e jovens, o que corresponde a cerca de 90% de todos os estudantes no mundo. Aos poucos as atividades vão sendo retomadas. Os dados mais recentes mostram que cerca de um terço dos estudantes do mundo seguem sendo impactados pela pandemia.
O presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Luiz Miguel Martins Garcia, avalia que ainda está em tempo de se adotar uma política de articulação nacional de ação emergencial para garantir as atividades escolares em meio à covid-19, atender quem deixou de aprender, capacitar professores e preparar a acolhida dos alunos quando a pandemia passar.
Ele pondera que, mais do que possível, a ação é necessária, uma vez que o uso de tecnologias para lecionar “é irreversível”.
Já a presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Maria Helena Guimarães, afirma que há recursos públicos disponíveis para equipar escolas e apoiar professores e alunos.
Segundo ela, cerca de R$ 30 bilhões do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), criado em 2000, podem ser usados com essa finalidade.
Para Maria Helena Guimarães, a pandemia fez com que a educação básica vivesse um novo momento, não só no Brasil. Ela acredita que haverá aprofundamento das mudanças após o retorno do funcionamento dos colégios e aposta na adoção do ensino híbrido, no incremento de atividades complementares nas escolas e de ensino por projetos e em mais atividade de pesquisa para os alunos.
Ela alerta, no entanto, que há risco de “acirramento das desigualdades” entre as escolas da rede privada e da rede pública, e que os alunos de colégios particulares devem sair na frente.
As diferenças entre as condições de trabalho na rede pública e na rede privada fazem parte do cotidiano do professor de geografia Sidnei Felipe da Silva, que leciona em três cidades no litoral norte da Paraíba. Duas escolas são públicas, nas cidades de Mataraca e Marcação, onde também atende alunos da zona rural e de aldeias indígenas. O terceiro emprego é em um cursinho pré-vestibular, no município de Rio Tinto.
Na escola preparatória para exames, que é particular, as aulas são transmitidas das próprias salas que ganharam câmeras e iluminação. “Às 9h, a aula começa, online e ao vivo, diferentemente do que ocorre nas escolas públicas”, compara. “O dono do cursinho percebeu que se os professores ficassem dependendo das suas redes domésticas existia o risco de perdemos conexão e os alunos ficarem no prejuízo”, conta.
Já para as escolas da rede pública, Sidnei conta que posta a matéria por meio de vídeoaulas para que o aluno acesse a internet “na hora que puder”. Há também aqueles que recebem apenas material impresso com o conteúdo das aulas. E outros com os quais o professor consegue manter contato por WhatsApp.
Para conseguir dar melhores aulas nas escolas públicas, Sidnei Felipe fez do quarto de hóspedes de sua casa um pequeno estúdio, criou canal no YouTube e mantém atualizado um blog para os seus alunos.
“O trabalho triplicou”, observa. O esforço do professor é reconhecido pelos alunos que enviam mensagens carinhosas e de agradecimento.
Apesar do êxito com a educação remota, Sidnei Felipe não abre mão do ensino presencial e do contato com os alunos. “Presencialmente tem o retorno do aluno no instante que a relação ensino e aprendizagem está acontecendo”, defende.
“É justamente no contato em sala de aula que nós conseguimos diagnosticar as necessidades dos alunos. Só assim, é que traçamos estratégias diversificadas para suprir as necessidades da turma”.
Além das razões didáticas, os professores têm um motivo afetivo para esperarem pela volta às aulas dentro das escolas: saudades!
“Nesta semana do professor, o nosso presente vai ser entrar em contato com todos nossos alunos”, comenta a professora Juanice Silva sobre a mobilização que a escola prepara. Durante os próximos dias, estudantes da escola de ensino especial do DF receberão ligações e video chamadas dos professores para poderem conversar e diminuir um pouco a distância e a falta do convívio escolar.
Com informações da Agência Brasil