Um voluntário brasileiro que participava dos testes clínicos da vacina desenvolvida pela Universidade Oxford e pelo laboratório AstraZeneca morreu devido a complicações de covid-19, na última quinta-feira. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi formalmente informada do fato nesta segunda-feira (19). O voluntário era o médico João Pedro Rodrigues Feitosa, de 28 anos.
A reportagem apurou junto a fontes ligadas ao estudo internacional e que não se identificam em função de obrigações legais que o voluntário não recebeu a dose da vacina e sim a substância usada como placebo. Porém, por conta do sigilo legal, o laboratório, os centros responsáveis pelos testes e a Anvisa não informam, oficialmente, se o voluntário recebeu o placebo ou não.
De acordo com a Anvisa, os desenvolvedores da vacina já compartilharam com a agência os dados da investigação realizada pelo Comitê Internacional de Avaliação de Segurança sobre o caso. A instituição informou ao GLOBO que o caso está sob avaliação.
Segundo a Anvisa, o Comitê Internacional sugeriu o prosseguimento dos estudos com a vacina.
Em nota, a Anvisa informou ainda que “com base nos compromissos de confidencialidade ética previstos no protocolo, as agências reguladoras envolvidas recebem dados parciais referentes à investigação realizada por esse comitê, que sugeriu pelo prosseguimento do estudo. Assim, o processo permanece em avaliação”.
A Anvisa ainda afirmou que os dados de voluntários são mantidos em sigilo devido aos princípios de confidencialidade do estudo, destacando que “a Agência cumpriu, cumpre e cumprirá a sua missão institucional de proteger a saúde da população brasileira”.
Após reunião com senadores e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Antonio Barra, lamentou a morte do médico João Pedro, naquele momento ainda não identificado. Ele disse, entretanto, que não poderia dar mais detalhes sobre as circunstâncias do caso devido à cláusula de confidencialidade.
— Em relação ao desenvolvimento vacinal, cujo protocolo tem entre seus signatários esta agência, está prevista uma confidencialidade ética em relação a tudo que envolve os voluntários de testes. Daí a escassez, neste momento, de maiores detalhes — disse Barra. — No dia 19 de outubro tivemos a comunicação oficial, como reza o protocolo, do comitê internacional independente relatando o ocorrido e relatando, ao mesmo tempo, a possibilidade de prosseguimento dos estudos, diferentemente da interrupção anterior. De posse dessa informação, ela permanece em contínua análise e, no momento, os testes prosseguem.
Testes estão mantidos
Em nota, o responsável pelos testes no Rio de Janeiro, o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), informa que “seguindo normas internacionais de pesquisa clínica e respeitando os critérios de confidencialidade dos dados médicos, não podemos confirmar publicamente a participação de nenhum voluntário no estudo clínico com a vacina de Oxford”.
O instituto ressalta, ainda, que “após a inclusão de mais de 20 mil participantes nos testes ao redor do mundo, todas as condições médicas registradas foram cuidadosamente avaliadas pelo comitê independente de segurança, pelas equipes de investigadores e autoridades regulatórias locais e internacionais. A análise rigorosa dos dados colhidos até o momento não trouxe qualquer dúvida com relação à segurança do estudo, recomenda-se sua continuidade. Vale lembrar que se trata de um estudo randomizado e cego, no qual 50% dos voluntários recebem o imunizante produzido por Oxford. No Brasil, até o presente momento, já foram vacinados aproximadamente 8 mil voluntários.”
Sue Ann Costa Clemens, chefe do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena (Itália) e pesquisadora do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, explica que pesquisas só devem ser interrompidas se houver alguma ocorrência inesperada, como no caso, revelado em setembro, do voluntário britânico com suspeita de esclerose transversa. Na ocasião, o estudo foi mundialmente interrompido. E retomado, quando se constatou que não teve a ver com a vacina.
Segundo ela, contrair covid-19 durante testes de uma vacina justamente contra a Covid-19 num momento de pandemia não é um evento inesperado e sim um fator de avaliação.
Em nota, a Universidade de Oxford ressaltou que os incidentes com participantes do grupo controle são revisados por um comitê independente e que a “análise cuidadosa” não trouxe preocupações sobre a segurança do ensaio clínico.
Médico estava na linha de frente
O médico João Pedro Rodrigues Feitosa desde março estava na linha de frente do atendimento a doentes de covid-19, em UTIs e emergências. Ele trabalhava num hospital privado e em outro da rede municipal, ambos na Zona Norte do Rio.
Ex-aluno de medicina e muito querido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se formou em 2019, ele era conhecido pela dedicação e o trabalho incansável. Nesta semana, a instituição postou em suas redes sociais uma homenagem em sua memória. Amigos contam que estava sempre disposto a ajudar os outros e não perdia o bom humor.
Feitosa era também um lutador. De origem humilde, foi bolsista-monitor durante todo curso de graduação porque precisava de ajuda financeira para se manter. Durante a faculdade, morava em Olaria, mas, quando se formou, mudou-se para a Lagoa e ganhou, segundo o grupo de recém-formados, R$ 40 mil em um único mês trabalhando exaustivamente, inclusive dobrando plantões. De acordo com os amigos, a luta pela sobrevivência o fez aprender rápido e trabalhar muito. Ele foi o primeiro de sua turma a tirar o registro no Conselho Regional de Medicina (CRM).
A morte surpreendeu e chocou os mais próximos, porque o médico, segundo eles, tinha boa saúde e não sofria de qualquer comorbidade. Ele teria recebido a dose de uma substância parte do estudo clínico da AstraZeneca/Oxford no fim de julho. O médico adoeceu em setembro e seu quadro se agravou até vir a falecer.
Chamada AZD1222, a vacina da AstraZeneca/Universidade de Oxford é feita com um adenovírus símio geneticamente modificado. O adenovírus funciona como “transporte” para uma proteína do Sars-Cov-2, a chamada proteína espícula, ou S, que o coronavírus usa para invadir as células humanas.
Esse tipo de plataforma, considerado inovador e promissor, nunca foi usado antes em vacinas no mercado. Estudos com a mesma estratégia — e vírus diferentes — fracassaram contra o HIV.
A estratégia agora é usar o adenovírus, que também foi alterado para não se replicar, para “apresentar” o coronavírus ao sistema de defesa humano que, então, produziria anticorpos para atacar a proteína S. Porém, como não tem o coronavírus inteiro, a vacina não é capaz de causar a Covid-19, o que aumentaria a segurança.
Possíveis causas da morte
Especialistas dizem que existem, em tese, três possibilidades para explicar a morte de Feitosa. A primeira é que ele pertencia ao grupo placebo, aquele que recebeu uma vacina de meningite e não o imunizante contra a covid-19. Como os estudos são conduzidos no formato “duplo cego”, para garantir a idoneidade dos dados, nem pacientes nem cientistas sabem quem tomou o quê. Essas informações são mantidas em um sistema fechado. Só dessa forma é possível saber se, de fato, a vacina protegeu alguém.
Uma segunda possibilidade é que ele tenha tomado uma dose, mas esta não tenha sido suficiente para protegê-lo do desenvolvimento da covid-19. Uma segunda dose estava sendo administrada nos voluntários justamente porque estudos mostraram que duas aplicações proporcionavam uma resposta mais robusta do sistema de defesa. Não está claro se o voluntário morto tomou uma segunda dose.
A terceira hipótese é que ele não foi protegido e a covid-19 tenha sido agravada por um fenômeno conhecido como amplificação dependente de anticorpos (ADE), que pode ocorrer em algumas infecções virais. Nele, anticorpos podem intensificar os efeitos da doença, ao invés de reduzi-los.
O caso mais conhecido de ADE ocorre com a dengue. A dengue hemorrágica, a forma grave e por vezes letal, acomete quem teve dengue antes. É por isso que a vacina é recomendada apenas a quem já teve alguma vez a doença, que pode ser causada por quatro subtipos do vírus.
Comunicado da Unifesp
No início da noite desta quarta-feira, a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que coordena os testes clínicos da vacina de Oxford no Brasil, distribuiu um comunicado à imprensa.
“A análise cuidadosa deste caso no Brasil, não trouxe dúvida quanto à segurança do estudo clínico em curso. A revisão do comitê independente e as agências regulatórias brasileiras recomendam que o estudo deve continuar”, afirmou a instituição. “A universidade se solidariza com a família (da vítima) nesse momento de perda.”
Segundo a Unifesp, mais de 8.000 voluntários receberam a vacina até agora no contexto do estudo brasileiro, sem grandes percalços. “Tudo avança como o esperado, sem ter havido qualquer registro de intercorrências graves relacionadas à vacina envolvendo qualquer um dos voluntários participantes”, diz o comunicado. [Foto de capa: Reprodução/Redes Sociais]