18 de abril de 2024

‘A democracia nos EUA está desgastada, e não só por Trump’, afirma Obama em entrevista

Barack Obama deixou a Presidência dos EUA em janeiro de 2017 e mergulhou num longo período de reflexão sobre seus oito anos na Casa Branca. Do exercício brotaram as 751 páginas, escritas à mão em blocos amarelos, do primeiro volume de suas memórias, “Uma terra prometida” (Companhia das Letras). Para ele, a polarização desmedida, as teorias da conspiração, as mentiras propagadas pela direita americana e o desdém de Donald Trump por valores e normas corroeram o processo democrático e vão demorar para serem superados pela sociedade americana.

— A nossa democracia está desgastada. Não é apenas um resultado relacionado a Donald Trump. As histórias que conto sobre a minha Presidência indicam como algumas dessas tendências já existiam. — afirmou Obama ao GLOBO e à TV Globo.

O ex-presidente concedeu a entrevista no domingo direto de Washington, e o papo foi ao ar na madrugada de segunda para terça-feira no programa “Conversa com Bial”. É parte da campanha de divulgação do livro, lançado mundialmente hoje e que cobre da infância até a caçada e execução de Osama bin Laden, em seu primeiro mandato.

Obama afirma que, tal qual Trump, o presidente Jair Bolsonaro despreza a ciência, mas terá no governo de Joe Biden “uma oportunidade de redefinir a relação” com os EUA e manter a liderança brasileira no combate às mudanças climáticas. No livro, ele descreve o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um líder cativante que tirou pessoas da pobreza, mas que teria “os escrúpulos de um chefão mafioso”.

Escritor de narrativa envolvente, Obama detalha a importância da mãe e da avó na sua formação, esbanja admiração pela mulher, Michelle, e transborda emoção ao relembrar o impacto de sua meteórica ascensão sobre o casamento e a relação com as filhas Malia e Sasha. Mas os pontos fortes do livro são os testemunhos de Obama sobre racismo e a escalada da oposição sem precedentes que os republicanos fizeram à sua Presidência.

Ele afirma que foram as perguntas que se fazia enquanto crescia, a respeito da desigualdade entre negros e brancos, que o instigaram a entrar na política, “sair da periferia do poder” e construir pontes entre as duas visões raciais do país. Mas o que encontrou foi uma oposição disposta a usar o racismo estrutural e as “ansiedades com o primeiro presidente negro” para obstruir a construção de seu legado.

O ex-presidente aponta que a estratégia tomou forma com Sarah Palin, vice republicana em 2008, e foi exacerbada por Trump. Ao final, o Partido Republicano havia colocado em primeiro plano “a xenofobia, o anti-intelectualismo, as teorias conspiratórias paranoicas e a antipatia às pessoas negras e pardas”, com consequências duradouras para os EUA.

Acredito que a chave para entender a sua biografia pode ser encontrada no que Michelle diz de brincadeira no início do casamento de vocês: “É como se você tivesse que preencher um buraco”. As 751 páginas foram escritas para preencher que vazios pessoais?

Bem, o livro cumpre vários papéis. Por um lado, é a história da minha Presidência. Foi uma época de muitos acontecimentos. Nos dois primeiros anos, eu lidei com a pior crise financeira desde a Crise de 1929. Havia uma guerra no Iraque, uma no Afeganistão, questões relacionadas ao terrorismo, crises do meio ambiente. Quis garantir que as pessoas entendessem essas questões. Mas também é uma história pessoal de alguém que foi inspirado pelo movimento dos direitos civis nos EUA e que resolveu entrar no serviço público. Acho que representa a educação de um jovem na sua evolução para o cargo mais alto do seu país. E, finalmente, espero que sirva de inspiração para os jovens nos EUA, no Brasil e no mundo entenderem que também podem causar um impacto.

Quando veio ao Brasil em 2011, o senhor visitou a Cidade de Deus, e cumprimentou principalmente crianças, crianças negras e pardas. A maioria delas vive em famílias sem pai, mais de 50%. Sua assessora Valerie Jarrett falou na época: “Aposto que mudamos a vida de algumas dessas crianças para sempre”. O senhor disse que se questionou se isso era verdade. Tem uma resposta agora?

Acho que os EUA e o Brasil são muito parecidos. Somos os dois maiores países do hemisfério, duas democracias que têm uma história com base na escravidão e na discriminação racial. Ambos têm dificuldade em superar as desigualdades, as injustiças do passado e olhar para o futuro. Quando estava na favela, eu senti uma afinidade em relação a muitas das crianças porque elas me lembraram das crianças de Chicago ou de Washington. Acho que o papel simbólico da minha Presidência foi importante. Não quero diminuir isso. Quando resolvi concorrer, um dos motivos foi que eu mandaria um recado de que qualquer criança pode aspirar a ser algo maior, que os horizontes não são definidos. Na minha Presidência, muitas vezes encontrei não só crianças negras e pardas, mas brancas que agora são jovens adultos e dizem: “Quando era mais novo, eu não valorizava a questão de existir um presidente negro.” Agora temos uma mulher de herança negra e asiática que vai ser a vice-presidente dos EUA. Essas coisas foram importantes. Mas nunca quis me iludir em relação às crianças nas favelas do Rio ou em qualquer lugar do mundo. Elas precisam mais do que só inspiração. Elas precisam de boas escolas, de emprego quando se formam, de uma moradia decente, precisam ser protegidas da poluição.

Barack Obama abraça a primeira-dama Michelle Obama na sala vermelha da Casa Branca, com a assessora sênior Valerie Jarret, em foto de 2009 [Foto: Pete Souza/Casa Branca]

Naquele mesmo dia, o senhor foi ao Corcovado no Rio. No dia anterior, tinha dado a ordem, pela primeira vez, de bombardear outro país, a Líbia, No jantar com a sua família, sentiu que suas filhas estavam se afastando do senhor. Depois, se deparou com a estátua do Cristo Redentor. As suas meninas ficaram do seu lado. Sasha segurou a sua mão. Malia colocou o braço na sua cintura. E o que aconteceu depois?

Sasha disse: “Vamos rezar?” Como você sabe, principalmente à noite, quando você está logo abaixo desse ponto histórico, é algo poderoso. O dia tinha ficado nublado, não tínhamos certeza se iríamos. Mas, de repente, a neblina se abriu e você se depara com essa figura gigante do Cristo na sua frente, com a luz branca dos holofotes. As meninas ficaram impressionadas e sugeriram que rezássemos. Eu concordei. Parte da minha oração foi para que minhas filhas soubessem o quanto eu as amo. E que a nossa proximidade, mesmo que elas cresçam e naturalmente se afastem, sempre demonstre o amor do pai delas. A outra oração que eu fiz na época foi porque estávamos no meio de uma operação arriscada na Líbia. Eu só rezei para que nada desse errado nisso também. Aliás, existe uma foto no livro que nos mostra enquanto estávamos subindo os degraus para ver o Cristo Redentor. É uma das minhas fotos preferidas. Está pendurada na minha casa. É do Pete Souza, meu famoso fotógrafo da Casa Branca.

Os brasileiros se lembram bem da reunião do G-20 de 2009 quando o senhor cumprimentou o ex-presidente Lula dizendo: “Esse é o cara. Amo esse cara.” No livro, o senhor fala do Lula, reconhece as conquistas sociais que ele teve, mas também diz que, supostamente, ele era uma espécie de mafioso político, envolvido em corrupções bilionárias. Hoje o senhor ainda diria que ele é o cara?

Bem, com os relatos de corrupção que surgiram, na época eu não sabia de todos eles. Acho que o dom que o Lula tinha de se conectar com o povo brasileiro e o progresso econômico que aconteceu quando ele tirou as pessoas da pobreza são coisas que não podem ser negadas. Uma das coisas que tento fazer no livro é descrever as complexidades de todas essas figuras. Falo do Putin, da Merkel. O que você acaba percebendo é que a maioria dos líderes é um reflexo das contradições e das tensões dos seus países. Existem alguns, como Merkel, de quem eu era muito próximo. Existem outros, como Putin, com quem tive uma relação de mais rivalidade. Mas, para entender qualquer um deles, é importante entender a história deles, o contexto no qual operam, as restrições políticas com as quais precisam lidar. Ao longo do livro, tento oferecer um pouco do contexto histórico dos países que visito. Muitas vezes não reservamos um tempo para nos entender além das fronteiras nacionais. Esses desentendimentos podem gerar conflitos e guerras.

O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumprimenta Barack Obama em visita oficial à Casa Branca em 2009 [Foto: Jonathan Ernst/Reuters]

Joe Biden indicou que poderia listar o Brasil como um fora da lei do clima. O presidente brasileiro reagiu com ameaças de usar pólvora em vez de saliva. Que conselho daria a Bolsonaro e Biden para tentar diminuir as tensões?

Não conheço o presidente do Brasil. Não quero dar uma opinião sobre alguém que não conheci. Posso dizer que, com base no que vi, as políticas dele, assim como as de Donald Trump, parecem ter minimizado a ciência da mudança climática. E o Brasil é um ator central na ação de poder ou não frear os aumentos de temperatura que podem causar uma catástrofe global. Tive a sorte com o presidente Lula e com Dilma Rousseff de ter os dois trabalhando com a gente nisso. O Brasil no passado foi líder em relação a isso. Seria uma pena se deixasse de ser. Na pandemia, em relação às ações do Donald Trump e como estão lidando com ela no Brasil, existe uma diminuição da ciência. Isso gera consequências. A minha esperança é que, com o governo de Biden, exista uma oportunidade de redefinir a relação. Sei que Joe vai enfatizar que a mudança climática existe. Tanto os EUA quanto o Brasil vão desempenhar um papel de liderança. Sei que Joe vai enfatizar a ciência quando se trata da existência da Covid-19. Mas, no fim das contas, os EUA e o Brasil têm muitas coisas em comum. O progresso que precisa acontecer, não só no hemisfério, mas no mundo, vai ser, em parte, determinado pela qualidade da relação entre os nossos dois países.

O presidente Trump insiste em que a eleição tenha sido fraudada, mantendo a polarização em níveis altíssimos e dificultando as coisas para Joe Biden curar o país, como ele havia prometido. Qual é o dano para a democracia americana e como o presidente eleito Biden deve abordar os 70 milhões de americanos que votaram no presidente Trump?

Não existe dúvida de que os EUA estão profundamente divididos neste momento. O resultado dessa eleição foi claro. A maioria das pessoas abraçou Joe Biden. Não existe nenhuma prova de que não tenha sido uma eleição justa e segura, na qual os votos foram contados e Joe Biden recebeu quase 5 milhões de votos populares a mais e muito mais votos eleitorais do que Donald Trump. Mas também é verdade que os partidos, os democratas e os republicanos, têm diferenças profundas agora. Vai ser um desafio tentar criar a união da qual precisamos para que o governo enfrente grandes desafios como a Covid-19, a mudança climática e a crise econômica. Acho que Joe vai ajudar a diminuir a temperatura e restaurar algumas das normas, tradições e valores institucionais básicos que republicanos e democratas antes de Donald Trump cumpriam. Não estou surpreso com o fato de Donald Trump estar violando o costume da transição de poder pacífica, porque ele violou vários tipos de normas antes. A boa notícia é que, no fim das contas, não vai fazer diferença. No dia 20 de janeiro, teremos um novo presidente. Conto no livro que, apesar das diferenças, George W. Bush não poderia ter sido mais cortês na instrução de suas equipes e agências para que trabalhassem conosco para garantir uma transição tranquila. Como estávamos no meio de uma crise na época, isso permitiu que conseguíssemos agir rápido em relação às questões ligadas à crise financeira. Se Donald Trump estivesse fazendo a mesma coisa, acho que seria mais fácil para o presidente eleito Biden e sua equipe abordar o vírus. Isso pode salvar vidas.

Barack Obama durante a entrevista com Flávia Barbosa, do GLOBO, e Pedro Bial [Foto: Agência O Globo]

Então acredita na democracia americana?

Acredito. Mas, como digo no livro, a nossa democracia está desgastada. Não é apenas um resultado relacionado a Donald Trump. As histórias que conto sobre a minha Presidência indicam como algumas dessas tendências já existiam. A tendência do Partido Republicano de contestar e obstruir até mesmo as políticas que eles haviam proposto antes se a proposta viesse de mim. Os tipos de teorias da conspiração e associações muito vagas com a verdade que vimos em algumas das mídias de direita e agora nas redes sociais que primeiro permitiram o movimento birther [que afirmava falsamente que Obama não nasceu nos EUA] dentro do Partido Republicano e agora as afirmações do presidente de que houve fraude numa eleição que até os funcionários locais republicanos garantiram que não teve nenhum problema significativo. Algumas dessas tendências têm raízes profundas e vai demorar um tempo para desmembrá-las, mas, no fim das contas, acredito na democracia americana. Em parte porque acredito nos jovens que vi, não só nos EUA, mas no mundo todo. Eles são instintivamente inclusivos, eles acreditam instintivamente em igualdade e justiça para as pessoas, mesmo que não sejam iguais a eles, eles reconhecem que o mercado livre precisa ter algumas regulamentações que permitam que os pobres também avancem e que garantam a sustentabilidade ambiental. Acho que as linhas de tendência são boas, mas o trajeto pode ser turbulento.

Capa de ‘Uma terra prometida’, lançado pela Companhia das Letras [Foto: Reprodução]

No seu livro, o senhor comenta que os republicanos fizeram política racial para se oporem ao seu governo. Mesmo assim, o senhor nunca colocou a raça como ponto central. Ficou surpreso com o fato de que o racismo pudesse criar uma identificação em alguns setores da sociedade? E reagiria de outra forma hoje?

Não fiquei surpreso. Nunca acreditei que, por eu ter sido eleito, estivéssemos num EUA pós-racial. Pense na história racial do Brasil. Os EUA, de forma parecida, não conseguem desfazer centenas de anos de História com apenas uma eleição. Acho que progredimos. Acho que melhoramos. Mas os instintos tribais antigos ainda existem. O legado da escravidão, o legado da segregação exercem uma sombra nos dias atuais. Vemos isso na economia, vemos isso nos conselhos corporativos, vemos isso nas nossas políticas. Nada disso me surpreendeu. Ao escrever o livro, tive que me perguntar às vezes se deveria ter sido mais franco e dizer: “Por que você está reagindo a mim dessa maneira se não reagiu assim a presidentes anteriores?” Mas no fim das contas, quando você é eleito para liderar um país, a única coisa que os eleitores não querem ouvir são as suas reclamações. Porque o que você está passando não é tão difícil quanto o que muitos deles passam. Eles podem estar perdendo o emprego, a casa, podem estar tentando dar um jeito de cuidar de um filho doente. Não querem ouvir uma pessoa que voa no Air Force One e mora na Casa Branca dizendo: “Por que as pessoas estão me tratando mal?”A verdade é que, depois de oito anos da minha Presidência, vimos pessoas que têm medo da perspectiva de alguém como eu, um afro-americano, ocupar o cargo mais alto do país. Mas a maioria do povo americano aprova o trabalho que fiz. Deixei o cargo com os mesmos altos índices de aprovação que tive durante a Presidência. Michelle e eu discutimos sobre isso. Ela olha o copo e diz que está meio vazio, e eu sou o cara que vê o copo meio cheio. Escolho acreditar que, apesar da turbulência, estamos progredindo nesse quesito.

O senhor foi influenciado por mulheres fantásticas a sua vida toda. O seu partido foi abalado por vozes femininas muito fortes recentemente, inclusive a de Kamala Harris, a vice-presidente eleita. Estamos perto de ter uma presidente mulher na Casa Branca? Acha que vai ser o sobrenome Harris ou poderia ser o sobrenome Obama?

Com certeza não vai ser Obama! Michelle não vai concorrer. Posso garantir isso. Mas acho que estamos muito perto. Quando Kamala Harris assumir o cargo, ela vai estar a apenas alguns passos do Salão Oval. Ela é uma pessoa com um talento extraordinário. Acho que a resistência às mulheres na liderança política tem sido de algumas formas tão forte quanto a resistência às pessoas de cor. É algo que está profundamente enraizado na nossa cultura. Não só na cultura americana e na brasileira, mas no mundo todo. As mulheres ainda sofrem discriminação. Existem países nos quais as meninas ainda não recebem as oportunidades de educação e emprego que merecem. E ainda estão sujeitas à violência doméstica e maus tratos. O trabalho de empoderar as mulheres é contínuo. Como eu disse antes, foi interessante, como presidente, poder observar que os países que oprimem as mulheres, que não usam os talentos das mulheres, tendem a ser os países que não se desenvolvem economicamente. Os países que muitas vezes estão se saindo bem em parte é porque reconhecem que, se não incluírem meninas e mulheres, metade da população envolvida em resolver os problemas, criar negócios e encontrar curas para novas doenças… Se não treinamos metade da população, é como uma equipe de futebol que deixa metade dela fora de campo. Você vai perder. Eu espero que Kamala Harris seja apenas o início de um processo no qual cada vez mais mulheres no mundo sejam vistas como líderes viáveis. Nós podemos observar que, no momento, os países que têm líderes mulheres, como a Nova Zelândia e a Alemanha, são os que estão lidando melhor com o coronavírus. Não acho que seja só acidente.

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