CPF dos filhos expõe dificuldade de reconhecimento de casais LGBTI

“Faz cinco dias que descobri que não sou mãe dos meus filhos na Receita Federal”, disse a escritora Marcela Tiboni, 38, mãe dos gêmeos Bernardo e Iolanda.

Sua publicação em uma rede social jogou luz sobre um problema que afeta casais homoafetivos: o formulário para criar um CPF para filhos menores de idade ainda é dividido nos campos “mãe” e “pai”.

Além da violência psicológica contra formações familiares diversas, esse aspecto traz implicações práticas, como a dificuldade em obter benefícios governamentais, entre eles o auxílio emergencial.

Marcela percebeu a falha ao consultar o número do documento dos filhos de dois anos no sistema da Receita, que pedia nome da criança e data de nascimento mais CPF e nome da mãe. Ela se colocava no campo da filiação materna, e a busca voltava vazia.

Na certidão de nascimento física, lá estão ela e Melanie Graille, 31, como mães da duplinha. Mas, no banco de dados do governo, nada. “E agora me digam, num mundo cada vez mais digital, o que vai valer mais, papel ou digital? Para o Estado sou ou não mãe dos meus filhos?”

Para Marcela, a dor de cabeça começou ainda no hospital. “Passou um rapaz para fazer a declaração de nascido vivo. Ali nos perguntou quem era a mãe, dissemos que as duas, e ele respondeu que só tinha campo de pai e mãe, que era o documento padrão.”

Tudo certo na certidão de nascimento, com o nome de Marcela e Melanie. Quando foram tirar o RG dos gêmeos, meses depois, de novo se depararam com a ausência de espaços para a dupla maternidade. A gambiarra no Poupatempo foi escrever o nome das duas mães na mesmo lacuna, um seguido do outro.

Para um dos gêmeos, o nome de Marcela vem primeiro, no outro, é o de Melanie.

O relato da autora resgatou um problema antigo. Cinco anos atrás, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro recomendou à Receita uma alteração na ficha para criar o CPF: em vez de “pai” e “mãe”, as expressões “genitor 1” e “genitor 2”. Até hoje, a sugestão não foi acatada.

A “invisibilidade da mãe lésbica”, diz Marcela, foi um baque para ela e a esposa, que desde o primeiro encontro, há sete anos, falavam em ter filhos. “Comecei a chorar, a situação deixa a gente muito vulnerável.”

Elas viraram mães em 2017, por meio de fertilização in vitro. Marcela fez indução para a amamentação quando Melanie estava grávida de sete meses, o que permitiu às duas a capacidade de nutrir os filhos com seu leite.

O caso das duas mães não é único. Nem o presidente da Abrafh (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas), Saulo Amorim, 38, foi poupado de ser vítima do que define como “homofobia institucional”.

Ele adotou Teodoro, 4, com seu primeiro namorado e hoje ex-marido. “Ficamos juntos 15 anos. A gente fugiu completamente do estereótipo, né? Do que conservadores gostam de tachar como promiscuidade, pessoas sem vínculo.”

Quando foi tirar a nova identidade fiscal da criança, ouviu no posto da Receita Federal que o CPF de Teodoro teria um vazio na parte reservada à maternidade.

“Todos os órgãos públicos puxam informações com base na Receita, de passaporte a antecedentes criminais. Mesmo tendo insistido, simplesmente não consegui, saí de lá com o campo ‘mãe desconhecida’ pro meu filho. Agora só mesmo com medida judicial.”

Outros casais gays que conhece “conseguiram botar o nome”, diz Saulo. “Não há procedimento, o que tem é uma grande zona institucionalizada e LGBTIfóbica.”

Em 2011, o Supremo Tribunal Federal determinou que a união homoafetiva é um núcleo familiar como qualquer outro, logo não deveria haver impedimentos para homossexuais adotarem. “E até agora a senhora Receita Federal não se mobilizou pra fazer nada, continua mantendo pessoas vinculadas à condição de mãe”, afirma o pai de Teodoro e, no futuro, de uma menina que chamará de Leonor.

Há nove anos, o ministro Carlos Ayres Britto, hoje aposentado, disse em seu voto: “Sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto”.

“Há quase uma década, as famílias LGBTI foram resguardadas pelo Judiciário. Já é possível que nos documentos da criança ou do adolescente, independentemente se foi reprodução assistida ou adoção, venham o nome de duas mães, ou de dois pais”, diz Bruna Andrade, fundadora da startup Bicha da Justiça.

“Não é uma discussão só teórica. Nosso CPF é utilizado para uma série de questões no dia a dia”, afima a mestre em direitos humanos. “Para participar de programas do governo, tirar passaporte, Imposto de Renda. E isso depende da vinculação ao nome de uma mãe específica.”

No caso do auxílio emergencial, que em muitos lares foi a única fonte de renda durante a pandemia, algumas mulheres relataram o seguinte: entravam com o pedido de assistência governamental, só que o sistema cruzava seu RG com o do filho. Aí se entendia que se tratava de um homem, já que no CPF da criança ela aparecia como pai.

Questionada, a Receita Federal disse por meio de nota que “disponibilizou acesso a todos os dados do CPF para a concessão do auxílio emergencial pelo Ministério da Cidadania, incluindo dados de filiação independente do sexo”.

O órgão fiscal afirmou ainda ter entrado em contato com a pasta “no intuito de colaborar para a solução mais rápida dos casos apontados pelo jornalista”.

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