24 de abril de 2024

Eleição de Biden gera desconfiança na Rússia e alívio na União Europeia

Foram apenas quatro anos. Mas a presença de Donald Trump na Casa Branca foi o suficiente para confundir a cena geopolítica do outro lado do Atlântico. A eleição do republicano em 2016 foi recebida com desconfiança por boa parte da União Europeia (UE) e com euforia pela Rússia. Em pouco mais de uma hora, Vladimir Putin já tinha parabenizado o suposto novo aliado. Nesta segunda (16), nove dias depois da confirmação da eleição de Joe Biden, os sinais parecem ter se invertido. A desconfiança dominou o Kremlin, e na Europa ainda não se pode dizer que o clima é de euforia, mas certamente é de alívio.

Em ação coordenada, os 27 países-membros e líderes das instituições europeias congratularam, quase simultaneamente, o presidente eleito. A aposta da UE é que Biden tem uma extensa pauta comum com a Europa, e que voltará às mesas de negociação multilaterais para tratar das questões globais. Trump torpedeou essas instâncias. Biden já prometeu, por exemplo, levar os EUA de volta para o Acordo do Clima de Paris e reabilitar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Especialistas ouvidos pelo GLOBO começam sempre pela mesma frase os comentários sobre essa nova fase das relações entre Washington e Bruxelas: “Agora que os americanos estão de volta…”. Ainda que haja diferenças a serem discutidas, parte-se sempre do princípio de que Biden é afeito a aliados. Uma pauta que deve aproximá-los é a contenção dos avanços da China. Mas Bruxelas não quer ter de optar entre Washington e Pequim, de quem pretende se aproximar para tocar a agenda da mudança do clima.

Escaldados depois da gestão Trump, os europeus agora querem mais autonomia. Aprenderam que acordos podem ser rasgados no governo seguinte, como aconteceu com o pacto nuclear com o Irã, que os europeus tentam manter vivo. Esta semana, o chefe da diplomacia da UE, Josep Borell, disse que só as mudanças de rumo das políticas americanas voltadas para o clima e o acordo com o Irã “alteraram por completo a cena mundial”.

— O democrata vai reconstruir a relação com o Ocidente criando uma frente transatlântica — afirmou o colunista de política internacional do Financial Times, Gideon Rachman, na semana passada.

A Rússia ainda não deixou claro como procederá diante de um governo Biden. Putin esperava que o Departamento de Estado confirmasse o resultado final para cumprimentar o democrata, segundo explicação dada pelo chanceler Sergei Lavrov, em entrevista na qual disse que o sistema eleitoral americano é “provavelmente o mais arcaico” do mundo.

— A política externa russa é reativa. É preciso esperar os primeiros passos do governo Biden para entender como Putin pretende agir. Pode ser uma boa oportunidade para um recomeço, mas isso requer vontade política e uma agenda limpa. É ainda oportunidade para inúmeras especulações políticas sobre a hostilidade do Ocidente — afirmou ao GLOBO Andrei Kolesnikov, do Centro Carnegie em Moscou.

Nas últimas duas décadas, Putin nunca abriu mão de manter um “oponente” externo útil por perto para distrair o público doméstico das agruras nacionais.

— O Kremlin vai ver o que acontece. A Rússia enfrenta desafios internos, com o sistema de saúde lutando para lidar com a onda de novas infecções da covid-19 — disse Tracey German, especialista em Conflito e Segurança do Departamento de Estudos de Defesa do King’s College de Londres.

Previsibilidade

Tanto Bruxelas quanto Moscou, contudo, veem a previsibilidade como ponto positivo da eleição de Biden — depois da era de isolamento em que os “EUA primeiro” de Trump manteve os Estados Unidos. Teriam também um aliado, ou adversário, mais presente.

Para German, a clareza com que o democrata tem apresentado seus objetivos de política externa é mudança bem-vinda, embora indique sua intenção de recuperar a coordenação com a Otan e seu desejo de desafiar o autoritarismo, o que deve antagonizar Moscou.

— Biden já deixou claro que vai retomar a política externa calcada nos valores democráticos do Ocidente e disse que é necessária uma “cúpula de democracias” para que se unam contra o autoritarismo.

Para a Rússia, o que interessa é “ser tratada como uma grande potência que tem o papel de atuar no espaço pós-soviético”, observa a professora:

— Os principais tópicos de uma agenda positiva entre o Kremlin e a Casa Branca deveriam incluir a estabilização do Oriente Médio de forma ampla, o que inclui Síria e Líbia, e o controle de armamentos— disse.

A ênfase de Biden na democracia deve ter repercussão no quintal da Rússia, onde ex-repúblicas soviéticas enfrentam protestos. É o caso da Bielorrússia, onde a oposição pede a saída do presidente Alexander Lukashenko, eleito para o sexto mandato em pleito criticado por falta de lisura. Biden condenou o silêncio de Trump em relação à situação, e prometeu apoio às aspirações democráticas bielorrussas e mais sanções contra o regime.

— O crescente apoio americano a movimentos como esse vai antagonizar Moscou, que desconfia dos esforços do Ocidente para promover reformas democráticas mundo afora, por acreditar que isso gera instabilidade e ameaça sua própria segurança interna — acrescentou German.

Outro tema espinhoso é Alexei Navalny. Principal opositor do Kremlin, o ativista acusa Putin pelo seu envenenamento com o agente químico Novichok na Sibéria. Navalny foi motivo das sanções impostas pelos europeus a figuras-chave da cena russa ligadas ao Kremlin, que revidou com reciprocidade. Os EUA de Biden prometem que serão, no mínimo, mais críticos a Putin.

No site da campanha, o presidente eleito é enfático: “O Kremlin, sem dúvida, acha que pode agir impunemente. Trump se recusou a confrontar Putin, a quem se referiu com uma pessoa ‘excelente’. (…) Ele ainda não condenou o ataque a Navalny. Seu silêncio significa cumplicidade.”

Novo começo?

Foi Biden quem cunhou a expressão “botão de reset”no governo de Barack Obama, de quem foi vice, em uma tentativa frustrada de recomeçar a relação entre Moscou e Washington. A então secretária de Estado Hillary Clinton presenteou o ministro Lavrov com um botão vermelho em uma caixa amarela com a inscrição. Na cerimônia, a expressão foi traduzida para russo como “sobrecarga”, o que foi corrigido por Lavrov.

O episódio mostra que nada é simples. Com Obama, as relações azedaram com a continuidade da expansão da Otan, que incorporou a Albânia e a Croácia. E degringolaram com a crise na Ucrânia, onde a derrubada de um governo pró-Moscou terminou com a anexação da Crimeia pela Rússia e desencadeou sanções em 2014. Uma longa lista de temas aguarda Putin e o quarto presidente americano com quem terá de lidar. [Capa: Christof Stache/AFP]

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