Abiy Ahmed tornou-se primeiro-ministro na Etiópia, em 2018, após anos de protestos, trazendo esperanças de renovação. Ele libertou presos políticos e encerrou um conflito de décadas com a Eritreia. Por isso, em 2019, recebeu o Nobel da Paz. No ano seguinte, no entanto, foi alvo de manifestações que deixaram centenas de mortos, colocando opositores atrás das grades. Agora, ao ordenar que suas tropas fossem para a região de Tigré, no Norte do país, Abiy pode ter dado o pontapé inicial de uma guerra civil.
Mais de 14.500 pessoas já fugiram de Tigré para o Sudão — o governo do país estima que vá receber mais de 200 mil refugiados. Centenas de integrantes das forças de segurança de Tigré e do governo federal já morreram. Nesta quinta-feira, a Anistia Internacional afirmou que ao menos dezenas de civis, mas “provavelmente centenas”, foram “esfaqueados ou esquartejados até a morte”. O verdadeiro saldo da violência, no entanto, ainda é difícil de saber, porque há dias a região foi isolada, além das linhas telefônicas e da internet terem sido cortadas.
O atual conflito na Etiópia tem dois protagonistas: Abiy, o primeiro-ministro, e a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT), que comanda a região. A “linha vermelha foi cruzada”, segundo o premier, quando um suposto ataque da FLPT a uma base militar federal em Tigré deixou “muitos feridos e propriedades destruídas” — no entanto, Abiy não apresentou evidências do ocorrido. Essa pode ter sido supostamente a gota d’água, mas o conflito entre os dois lados é mais antigo.
Antes de ser premier, Abiy, de 44 anos, trabalhou no setor de inteligência do Exército e foi membro do Parlamento. Ele fazia parte de uma das organizações da Frente Democrática Revolucionária do Povo (FDRPE), que na prática governava a Etiópia como partido único desde que derrubou, em 1991, a ditadura de Mengistu Haile Mariam e era liderada justamente pela FLPT.Abiy foi o primeiro oromo — o maior grupo étnico da Etiópia — a ocupar o cargo de primeiro-ministro. Ao chegar à liderança do país, retirou diversos representantes da FLPT de cargos importantes das Forças Armadas e dos serviços de segurança, prometendo renovar a política e unir o país, marcado por conflitos entre as mais de 80 etnias. A limpeza feita pelo premier, no entanto, foi vista como perseguição pela FLPT.
A princípio, o premier foi elogiado como um líder capaz de unificar o país. Além de libertar presos políticos, permitiu a legalização de partidos antes proscritos e prometeu eleições multipartidárias e competitivas. Mas as coisas começaram a mudar.
Entre junho e julho deste ano, ele esteve no centro dos protestos liderados pelo seu próprio grupo étnico que incendiaram o país, deixando centenas de mortos. Os oromos passaram a ocupar as ruas após a morte do cantor Haacaaluu Hundeessaa, de 34 anos, que era o autor de músicas que formaram a trilha sonora dos quatro anos de manifestações que levaram Abiy ao poder. Abiy reprimiu os atos, prendendo diversos opositores.
— Ele é um pouco parecido com Putin [presidente da Rússia]. Ambos têm um passado semelhante e não são diferentes em outras questões: os dois gostam de publicidade, gostam de ser admirados. Mas, no fim de tudo, eles estão prontos para usar métodos bastante cruéis — aponta ao GLOBO Martin Plaut, pesquisador sênior sobre o Chifre da África na Universidade de Londres. — E acho que isso não estava claro no início. No fim, ele se mostrou capaz de prender diversas pessoas, criando uma situação não exatamente melhor.
Desde que o Exército foi enviado a Tigré, o governo federal também decretou estado de emergência por seis meses na região, cortou linhas telefônicas e internet, além do espaço aéreo ter sido fechado. Na região moram 6 milhões de pessoas — 5% da população de 109 milhões do país.
Em 7 de novembro, a ONU alertou em um comunicado que um avanço do conflito poderia levar a “deslocamentos maciços dentro e fora da Etiópia”, afirmando que 600 mil moradores dependem de ajuda humanitária para se alimentar e que 96 mil moradores são refugiados.
Nesta sexta-feira, a organização disse que a velocidade da chegada de novos refugiados no Sudão está “sobrecarregando a atual capacidade de fornecer ajuda”.
Outro comunicado, este do Instituto dos Estados Unidos para a Paz (USIP, na sigla em inglês), afirmou que a “fragmentação da Etiópia seria o maior colapso da História moderna”, apontando que o país tem uma população cinco vezes maior que a da Síria antes da guerra. A desintegração do país levaria “a um conflito interétnico e inter-religioso em massa; a uma vulnerabilidade perigosa para a exploração por extremistas; uma aceleração do tráfico ilícito, incluindo de armas; e uma crise humanitária e de segurança na encruzilhada da África e do Oriente Médio em uma escala que ofuscaria qualquer conflito existente na região”.Desde então, a União Africana, a União Europeia, os EUA e até o Papa também solicitaram um cessar-fogo e que haja diálogo interno, o que ainda não ocorreu.
Além de mortos, feridos e refugiados, forças federais capturaram um aeroporto na região de Tigré, forças da FLPT dominaram a sede militar federal na capital regional Mek’ele e há relatos de jornalistas e membros da etnia tigré presos na capital do país, Adis Abeba. Nesta quinta-feira, Abiy, que tem apoio de milícias da região de Amhara, vizinha de Tigré, afirmou que “a região oeste de Tigré foi libertada”.
À agência de notícias Reuters, refugiados no Sudão contaram que viram corpos espalhados pelas estradas enquanto fugiam durante a noite, temendo serem achados e mortos.
Segundo um relatório do centro de estudos International Crisis Group (ICG), o conflito “pode ser prolongado” dada a “força das forças de segurança de Tigré”. São cerca de 250 mil soldados bem treinados, que, de acordo com o ICG, aparentam ter apoio da população da região.— O grande problema da liderança de Tigré é a linha de abastecimento. Como ela vai se reabastecer se estiver cercada por forças hostis? Precisa de combustível, peças de reposição para o maquinário e outros itens essenciais — aponta William Davison, analista para a Etiópia do International Crisis Group, baseado em Adis Abeba.
Com todos esses fatores, ainda há a possibilidade de a Eritreia, que faz fronteira com Tigré e é aliada de Abiy — com sentimentos contrários à FLPT — entrar na disputa, levantando mais dúvidas sobre quando o conflito poderá acabar. Abiy tem ignorado o pedido de diversas organizações internacionais e países para dar um passo atrás e tentar resolver o conflito de maneira pacífica. O outro lado também não dá sinais de que irá ceder: “Não podemos ser derrotados”, disse o presidente da FLPT, Debretsion Gebremichael, em entrevista à Bloomberg nesta quinta-feira.
— Os tigrés estão lutando pelas suas vidas, e Abiy está lutando pela sua vida política, pelo seu futuro — afirma Plaut, da Universidade de Londres. — Não acho que tenha saída. A única coisa que eu sei é que o Chifre da África é interconectado, funciona como um sistema único. E, quando uma parte cai, todas as outras estão sempre envolvidas. As consequências podem ser inimagináveis. [Capa: Tiksa Negeri/Reuters]