Erika Hilton: Como a afro-transexual da periferia tornou-se a mulher mais votada do Brasil

“Erika é uma jovem que, quando criança, sempre dizia que conseguiria ser presidenta. E que cresceu muito amada, criada por mulheres fortes e guerreiras”. É assim que Erika Hilton, vereadora mulher mais votada em todo Brasil nas últimas eleições, busca se definir e relembrar o início de sua trajetória. Aos 27 anos, negra, trans e periférica, recebeu 50.508 votos na cidade de São Paulo, tornando-se também a mulher a receber mais votos na capital paulista e a décima mais votada entre toda a vereança eleita para as Câmaras do Brasil.

Nascida em Franco da Rocha e criada na cidade vizinha de Francisco Morato, município com o menor IDH da região metropolitana de São Paulo, Hilton descobriu cedo a paixão pela política. Mas, apesar da vida feliz no núcleo familiar na infância —  rodeada pela mãe, avós e tias, todas empregadas domésticas — a caminhada rumo à vitória no último domingo foi recheada de desafios que marcam a trajetória da maioria das travestis e transexuais do país.

Na pré-adolescência, lembra-se de ser “humilhada, ridicularizada e maltratada” nos intervalos das aulas nas escolas públicas que frequentou. Assumiu-se gay e foi enviada pela mãe, então evangélica fervorosa, para casa de parentes religiosos em Itu, interior de São Paulo. Lá, converteu-se e passou a frequentar também uma igreja. Não era feliz. Ao se mudar novamente com a mãe para um conjunto habitacional popular, reconheceu-se em outros corpos marginalizados e decidiu abandonar a igreja. Foi expulsa de casa.

—  De repente, me vi hostilizada pela família. Passei a dormir nas ruas e a vivenciar a prostituição na adolescência, as casas de cafetinas e a abjeção e desumanização do corpo negro e travesti vindo da periferia. Vivi uma realidade muito conhecida das travestis — conta Hilton.

Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) indicam que, excluídas do mercado de trabalho formal e dos círculos de apoio familiar, cerca de 90% das travestis e transexuais do país têm que recorrer ao mercado do sexo para a subsistência. Com poucas políticas e equipamentos de inclusão social voltadas para esse público, muitas também vivem nas ruas. Na capital paulista, há duas casas de acolhida municipais para a população trans, com 60 vagas. Cerca de 1.500 transexuais vivem nas ruas da cidade, segundo estimativas de ONGs que atendem a população de rua.

O ponto de virada na vida de Hilton, com a saída das ruas, foi a retomada das relações com a família, o que a agora vereadora atribui a um distanciamento dos familiares da vida religiosa. Reaproximada da mãe, voltou para a escola, completou o ensino médio, fez curso pré-vestibular e ingressou em pedagogia na Universidade Federal de São Carlos. Lá, iniciou a militância política que a levaria a tornar-se integrante da Bancada Ativista, primeiro mandato coletivo eleito na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), ao lado de nove outras filiadas do PSOL e da Rede Sustentabilidade:

— Hoje minha relação com minha família é maravilhosa. Me resgataram depois que romperam com o pensamento fundamentalista e me possibilitaram voltar para a escola, me apoiaram na universidade e me apoiam na vida política. A virada se deu quando reatei com minha família e comecei a perceber a urgência do meu corpo de se colocar como protagonista numa luta em prol do resgate da nossa humanidade, que é roubada todos os dias.

A eleição na chapa coletiva da Alesp trouxe oportunidades, mas também decepções. A ativista foi uma das autoras do pedido de impeachment do então recém-empossado Ministro da Educação Milton Ribeiro, em setembro, quando o pastor atribuiu a homossexualidade à criação de jovens em “famílias desajustadas” e afirmou que reformularia a educação sexual no Brasil.

Mas a heterogeneidade do mandato coletivo fez com que Hilton não sentisse que suas pautas tinham espaço e que era levada a negociar valores caros à sua militância política, como a defesa do direito à moradia. Fez críticas públicas também a mandatos coletivos feministas, que segundo Hilton silenciam pautas de classe, e a candidaturas tradicionais que utilizariam negros e outras minorias como “vitrine” para angariar votos. Decidiu concorrer sozinha como vereadora, apoiada pelo mesmo movimento que originou o mandato coletivo em 2018.

Parte da estratégia para tornar-se reconhecida e compartilhada incluiu cerca de R$5 mil em investimentos para criação de páginas e publicações em redes sociais como o Facebook. O dinheiro foi parte dos cerca de R$90 mil recebidos pela campanha. Pouco mais de 62 mil destes foram enviados pela direção estadual do PSOL. O resto, mobilizado através de financiamento coletivo e doações de pessoas físicas — inclusive de Hilton, que desembolsou R$2,5 mil para a própria campanha. A maioria dos gastos da corrida foi destinado ao material publicitário e serviços digitais.

O investimento deu certo: sua candidatura fez barulho nas redes e recebeu apoio de artistas como Pabllo Vittar e Emicida, além de nomes como o advogado e professor Silvio Almeida e as atrizes Renata Sorrah e Mel Lisboa.

— Esperava uma resposta satisfatória nas urnas, porque muitos assinaram e divulgaram o manifesto em meu apoio. Mas também fui a mais atacada nas redes durante a campanha. Não imaginava que seria a mais votada, porque vivemos numa sociedade transfóbica, estruturada para manter corpos dissidentes como o meu longe dos espaços de poder — diz Hilton.

A campanha intensa entre setembro e novembro foi seguida de uma crise de cansaço que tirou Erika dos holofotes um dia após a vitória. Ela afirma que precisou fazer uma pausa “para se recompor física e mentalmente” após o pleito:

— Fazer campanha é muito exaustivo e depois, com a expressiva votação, tive um desgaste físico e mental muito grande. Precisei dar uma parada. Mas estou de volta plena e à todo vapor.

Pautas identitárias e sociais

As críticas à sua plataforma vêm muitas vezes da própria militância. Uma das maiores cobranças atuais é que, no mandato que se inicia em janeiro, a vereadora legisle também em prol dos direitos dos homens transexuais, que frequentemente se consideram invisibilizados nas lutas pelos direitos da população trans. Ela será acompanhada na Câmara pelo vereador eleito Thammy Miranda (PL), também transexual e um dos mais votados na cidade.

Parte do desafio de Hilton e pelo menos outros cinco vereadores que devem formar a bancada da diversidade na Câmara será atender às demandas de pautas identitárias de seu eleitorado enquanto tira do papel planos voltados à periferia e situação social da cidade. No primeiro ano de mandato, Hilton elenca que suas prioridades serão a discussão do aumento da população de rua na cidade, o Projeto Transcidadania e maior inclusão de homens trans nas políticas para a população.

Outro desafio será a polarização da Câmara, que receberá em janeiro grupo heterogêneo com nomes como Delegado Palumbo (MDB) e Sonaira Fernandes (Republicanos), apoiada por Bolsonaro durante a campanha e que se descreve como “cristã, conservadora e ex-assessora de Eduardo Bolsonaro”.

— Estou preparada e acho que será parecido com o cenário que encontrei na Assembleia Estadual, com bancadas polarizadas. Terei que ser resiliente e apostar no diálogo, porque é assim que se faz política. E não quero ser legisladora só da causa trans, mas dialogar com todos os problemas da cidade — diz Hilton.

Nos últimos dias, recuperada da exaustão pós eleição, voltou atenções e militância para a questão racial. O assassinato de um homem negro num supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre, dias após sua eleição recorde, ilustra um Brasil dividido entre o atraso e a tolerância, no qual corpos negros são ainda os maiores alvos da violência, diz a vereadora:

— Aquele homem tinha raça e é sempre esse corpo o marcado para morrer. É o corpo marcado para o cárcere, o manicômio e o saco de lixo. É cruel e revoltante e por isso precisamos ocupar espaços na política. [Capa: Rafael Canoba/Divulgação]

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