Ícone do site ContilNet Notícias

Monja Coen: “Não adianta querer as coisas como antes; a Terra não volta atrás”

Por O GLOBO

“Quando a morte está perto, temos que pensar no que é essencial, no que fiz de bom e o que posso fazer com o pouco tempo que me resta – mesmo que sejam 40 anos, porque a vida humana é curta. O que faço com a minha vida? O que é essencial, fundamental?”

Incerteza. Medo. Perdas. Em tempos de pandemia, ou mesmo em épocas mais normais, a realidade pode nos sobrecarregar.

Mas sempre temos um “fio conectado à terra”, e esse refúgio é a respiração consciente, argumenta à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) a Monja Coen, uma das mais conhecidas representantes do budismo zen japonês no Brasil.

Em japonês, o termo “coen” significa “um só círculo”, ela explica. Ela aderiu ao budismo depois de uma longa busca que começou quando tinha pouco mais de 20 anos e trabalhava como jornalista.

Na época ela tinha uma filha, fruto de um breve casamento quando ainda era adolescente. Hoje ela já tem dois bisnetos.

Seu livro mais recente, Zen para distraídos – Princípios para viver melhor no mundo moderno, compila alguns dos ensinamentos compartilhados por ela no programa de rádio “Momento Zen”.

Nesta entrevista, ela explica como usar a meditação e as práticas budistas para enfrentar dificuldades relacionadas às mortes e rupturas da pandemia – principalmente a usar a respiração consciente.

E, ao fim, ela compartilha orientações para principiantes que queiram experimentar a meditação.

BBC – Em poucas palavras, o que é ser zen?

Monja Coen – Zen é uma palavra que vem da Índia antiga e quer dizer meditar.

Acho que meditar é autoconhecimento, a libertação da mente humana. Porque se você se conhece a si mesmo, não será manipulada por ninguém e terá escolha.

Isso para mim é importante.

BBC – É então uma forma de nos encontrarmos com nós mesmos? Ao que esperamos ter acesso com a meditação?

Monja Coen – À essência da mente humana, ao que é ser humano: pensamentos, conexões neurais, sentimentos.

Não analiso uma mente fora de mim, mas sim estou em um processo de autoconhecimento que transcende a minha história pessoal.

A princípio, as pessoas buscam a meditação porque querem mais tranquilidade, dormir melhor, ter melhores relações humanas, mas tudo isso são efeitos colaterais.

O principal efeito é esse autoconhecimento, e com ele você responde ao mundo, em vez de reagir.

BBC – Qual a diferença entre responder e reagir ao que acontece?

Monja Coen – Reação significa que se alguém me insulta eu o insulto.

Responder é outra coisa, e é muito parecido ao que Jesus dizia com “dar a outra face”, ou seja, não reaja fazendo o mesmo que o outro está.

Se te insultam, você não precisa insultar. Em vez disso, pode compreender de onde vem essa ação, pensar e escolher uma resposta adequada para interromper o sofrimento.

BBC – Em termos simples, se alguém nos fere ou insulta, como a meditação pode nos ajudar a responder de forma hábil e não destrutiva?

Monja Coen – Vejamos um exemplo. Se você mora com alguém que briga o tempo todo, essa relação só vai mudar quando você mudar.

Você quer que o outro mude, mas se espera que ele diga algo, está mantendo o círculo vicioso. Com a meditação, você vai estar presente em si mesma. Vai dizer: isso é um insulto, mas o que tem a ver comigo?

Posso me perguntar se devo mudar algo. Mas não preciso me defender de nada, porque me conheço, sei quais são as minhas partes fracas e fortes.

Então aquilo que seria um insulto vira palavras no ar.

Isso acontece em questão de segundos; a energia prejudicial que alguém nos lança com raiva, rancor, ciúmes é como um raio de energia. Você sente, não tem como negar. (Mas) diz a si mesma: “Isso não me ofendeu” e respira.

Nós trabalhamos muito com a respiração consciente. Porque a respiração emocional é rápida e superficial, mas a respiração consciente é mais profunda.

Aí você vê que pode fazer com que a guerra não tenha continuidade, talvez possa dialogar com a pessoa.

Mas eu também tenho meus momentos próprios de estupidez, todos os temos.

BBC – Em seu livro você menciona o mestre zen Thich Nhat Hanh, de outra tradição budista. Ele diz que a compaixão é a melhor defesa? Como ver com compaixão a quem nos causa sofrimento?

Monja Coen – O primeiro (passo) é a respiração consciente.

Thich Nhat Hanh também ensina muito a meditação caminhando. Às vezes a agressão te deixa tão nervosa que você não consegue ficar sentada, mas pode caminhar fazendo respiração consciente, e assim oxigena seu corpo e cérebro.

O Dalai Lama diz que a compaixão às vezes não é visceral, não é algo que nasça em nós facilmente. A compaixão tem a ver com compreender, não significa aceitar.

Por exemplo, eu compreendo que a pessoa que faz propaganda neonazista teve uma educação que talvez a tenha levado a isso. Mas não aceito que isso esteja certo e me manifesto contra.

Mas essa manifestação não vem do ódio, não é raiva, porque quando você deixa que as emoções te dominem, você perde a capacidade de diálogo.

Então você precisa voltar a sua postura física, à respiração consciente, para não entrar nessa dinâmica de enfrentamentos. É difícil e, como tudo, exige treino.

A respiração consciente nos dá um eixo de equilíbrio para poder fazer o que estamos fazendo um pouco melhor, não é para nos tirar da realidade e sim para nos deixar mais eficientes, conscientes e hábeis.

BBC – Em seu livro, você diz que a meditação nos permite sentir a interconexão com todos os seres vivos.

Monja Coen – Um dia desses falei com um neurocientista que me contou como em sua área estão usando ressonância magnética do cérebro para entender o que acontece durante o processo meditativo.

Quando estamos em meditação profunda, o cérebro fica muito estimulado, acordado. Meditar não é descansar, como acham alguns, é conhecimento.

Nas ressonâncias se notou que há duas áreas do cérebro que não são estimuladas na meditação, e são as áreas que permitem a separação entre o meu eu interno e a realidade ao meu redor.

Ou seja, durante a meditação profunda você se sente em conexão, em comunhão com tudo o que existe – todas as formas de vida, tudo é você. Não está separado de nada.

Eu sempre digo: cada um de nós é o tudo manifestado, tudo se manifesta em cada um de nós.

As pessoas querem resolver tudo na vida em um nível de consciência superficial.

Por isso, também usamos o que se conhece como Koan, questionamentos que a lógica não consegue alcançar, para dessa forma transcender a mente lógica e entrar em áreas mais profundas da nossa consciência.

BBC – Na hora de comer, você sugere no seu livro uma prática inspirada nessa interconexão.

Monja Coen – Antes de comer, coloque o prato diante de você e pense: como chegaram a mim estes alimentos, cada plantinha e tantas formas de vida?

Não é que você vá rezar, mas sim agradecer não só pelos vegetais, mas sim por quem os plantou, colheu, vendeu, quem fez o prato, seu material.

Enfim, toda a vida na Terra está nesse prato de comida. Trata-se de aprender a observar em profundidade.

BBC – Que conselho você daria para resistir a estes tempos de pandemia? Muita gente diz sentir ansiedade gerada por tanta incerteza.

Monja Coen – Primeiro, quero dizer que temos uma tristeza coletiva, uma preocupação e um medo coletivos.

Os cientistas já falavam havia anos da possibilidade de vírus devastadores (se tornarem pandêmicos) e agora está aqui.

Há instabilidade. Mas Buda dizia que não existe nada seguro no mundo, nunca existiu.

A ideia de segurança e estabilidade é uma criação mental nossa porque o mundo é transformação e movimento.

Sim, no momento não tenho certeza sobre como será o amanhã, e nunca tive, era uma ilusão.

A nossa vida é frágil, temporária e finita. O primeiro é perceber sua impermanência, que não é prejudicial, porque também significa que o que não está bem pode melhorar.

Tenho que me adaptar à realidade. E, além disso, tudo o que temos é este momento, o agora. Não adianta nada querer que as coisas sejam como eram antes, porque a Terra não para e volta para trás.

Temos que atravessar esta pandemia que nos atravessa e nos machuca. Devemos perceber que nossas tristezas e lutos são coletivos.

BBC – Então, o que podemos fazer?

Monja Coen – Dei muitas entrevistas aqui no Brasil e sempre me perguntam o que podemos fazer nestes momentos.

Minha resposta é: respire, volte à respiração consciente. Quando você está aflito, ansioso ou desesperado, respire, oxigene seu corpo e sua mente e veja o que você pode fazer para diminuir a dor e o sofrimento. Está com muita comida em casa? Coloque uma mesinha na rua e ofereça comida para quem precisa. Tem muita roupa? Doe a quem tem frio.

Este também é um momento de despertar a consciência da solidariedade, de perceber que estamos todos no mesmo barco. Use este tempo para meditar e refletir sobre o que é essencial na vida.

Quando a morte está perto, temos que pensar no que é essencial, no que fiz de bom e o que posso fazer com o pouco tempo que me resta – mesmo que sejam 40 anos, porque a vida humana é curta. O que faço com a minha vida? O que é essencial, fundamental?

Alguns fogem para as drogas ou a bebida, todas essas possibilidades estão dentro de nós. Mas temos a capacidade de escolher.

E a meditação pode nos ajudar a fazer escolhas adequadas para nossos propósitos, a ter clareza de consciência de o que estamos escolhendo e aonde a escolha nos leva.

A meditação não é um milagre, mas facilita o autoconhecimento e as decisões adequadas para as situações que vivemos.

BBC – Para muitas pessoas, a instabilidade também tem a ver com a perda de emprego.

Monja Coen – Há muitos empregos desaparecendo, mas outros se abrindo. Agora todos fazem compras online, se você tem uma loja abre uma página na internet, se você não pode abrir seu restaurante faz com que os funcionários que atendiam as mesas agora façam entregas a domicílio, para não perdê-lo.

O mundo está mudando e seguirá híbrido, e mesmo quando volte o presencial haverá muitas coisas remotas.

Pergunte-se: para onde está indo o mundo e em que eu posso me especializar para atender essas necessidades? Não fique se lamentado pelo que você perdeu.

BBC – Muitas pessoas também perderam pessoas queridas para a covid-19.

Monja Coen – Quando alguém morre, eu digo ao parente: você não perdeu nada. Conviveu com uma pessoa querida, essa pessoa deixou memórias maravilhosas em você. Não a mate de novo, ela vive em você.

Uma senhora portuguesa me mandou umas fotos. Tinha perdido uma tia querida para a covid-19 e comprou um buquê de rosas brancas e as jogou ao mar, dizendo um Ave Maria e um Pai Nosso porque é católica. E assim se despediu.

Encontramos formas de nos despedirmos de nossos mortos e de nossas expectativas. Porque o luto não é só pela morte, pode ser pela perda do meu negócio ou de uma relação em que a convivência acabou.

Você precisa então refazer sua vida. Estou escrevendo um livro com um monge beneditino alemão. Ele escreve na Alemanha, eu, no Brasil, e a editora vai juntar tudo. É um livro justamente sobre essa redescoberta da existência, quando tudo em que acreditávamos se desmoronou com um castelo de cartas. Mas podemos fazer outras coisas.

BBC – Um último pensamento aos leitores nestes tempos de coronavírus.

Monja Coen – Presença pura, estar completamente presente, acordado a o que está acontecendo. E tomar ações adequadas que sejam benéficas para o maior número de seres. [Capa: Arquivo pessoal]

Guia de meditação para principiantes da monja Coen

Sair da versão mobile