“Eu queria ter uma segunda chance de falar. Conversamos muito sobre a minha carreira, que fez 30 anos, mas daqui a pouco vai fazer 40, 50 e um dia vou morrer. As direções que fiz no teatro, os papéis que me deram robustez, tenho orgulho da minha história. Mas e o agora? Ter essa capa em um dos únicos anos em que não apresentei nenhuma obra artística é relevante. Quero colocar o que de fato aconteceu comigo e, com isso, deixar uma mensagem”, recomeça Fabio Assunção. Recomeçar é bonito. É a segunda vez que nos falamos, entrevista em dois atos a pedido dele. “O que de fato justifica esse título?”, me pergunta. Pelo vídeo, vejo que tem papel e caneta em mãos, roteiro premiado do seu filme mais importante em 2020, a própria vida.“Impossível não começar pela minha saúde, uma mudança de alimentação rigorosa que se inicia como uma preparação para FIM (adaptação direta do livro de Fernanda Torres), um trabalho rico de caracterização em três tempos.” Por causa da pandemia, as gravações foram interrompidas, mas as transformações não. “Com disciplina e um time incrível, perdi 27 quilos em 13 meses. Mas isso é só um número. O que mais me interessa é o ensinamento: renunciar ao que não preciso, aos excessos.” No processo, também passou a lutar. “Muito mais do que uma barriga trincada, o exercício dá musculatura ao pensamento. No jiu-jitsu você usa a força de quem te ataca contra a pessoa. No boxe, a chave é o tempo. Em algumas lutas da vida precisamos entender o timing certo para enfrentá-las.” Na primeira vez que nos falamos, Fabio enfrentava a covid-19. “Já não sinto mais febre. Mesmo me protegendo, peguei. Essa pandemia me trouxe forte a visão do coletivo. Desde o início me posicionei a favor das determinações da OMS, isso é civilidade.” E Fabio se posiciona. “O que me entristece é não poder votar. As eleições americanas me deram esperança, porque começam a reverter a vibe no planeta. Penso que teremos um efeito cascata.” Vibe boa, seu Instagram é um diário aberto do que sente. “Escrevo porque quero me comunicar com a imensa maioria. A ideia não é mudar o mundo, pensar diferente é democracia. Já me posicionei mais publicamente, na época do golpe, da saída da Dilma. É incompreensível pensar como chegamos aqui.” De certa forma, suas redes seguem com posicionamentos políticos. Dizer que é a favor de um aborto fruto de um estupro infantil, por exemplo, hoje é ato político. Para ele, bandeiras essenciais. “O lixo vai estar sempre ali, o que é bom também. A questão é aprender a separar o lixo e saborear as coisas maravilhosas que o mundo tem.” A arte é uma delas.
“Tenho dentro de mim cada set, cada Norte e Nordeste, a diversidade, a pulsação da plateia. Começar um personagem é se jogar num abismo. Me vejo como uma linha do tempo contínua, em construção”, diz o ator ciente do papel transformador do seu ofício. “Se não há conflito, não é dramaturgia. Se não provoca a sociedade, não tem função. Infelizmente, para um grupo de pessoas que está no poder, é preciso que não se pense em arte, nem em educação. Por isso o desmonte da cultura. É um grupo de gente que paga 500 dólares numa peça da Broadway, mas compra carteirinha de estudante para pagar meia entrada aqui. Um grupo de pessoas que enche a boca para dizer que foi ao Louvre, que acha belíssima a estátua de David nu em Florença, mas quando vê no MAM a obra da natureza de um homem nu, mesmo com todos os avisos, se revolta. A cultura brasileira é a nossa maior expressão. Este ano comprei espetáculos de um amigo e ator pernambucano que estava desempregado, são monólogos dos cordéis do Ariano Suassuna, feitos pelo Aramis Trindade, para que ele apresentasse na CUFA (Central Única das Favelas), e acabou sendo uma ponte com a Secretaria de Cultura de Niterói. É preciso agir.”
Agir. De preferência, com sabedoria. Foi o que fez com a música batizada Fabio Assunção, lançada em 2018 pelo grupo La Furia, que satirizava a sua imagem. “Tudo indicava que deveríamos ir para um litígio, mas preferi o diálogo. Eles me disseram que era uma homenagem. Eu agradeci, mas expliquei que ridicularizar uma doença não tem graça, que não se pode glamourizar um assunto tão sério para muita gente. Sugeri que a renda dos direitos autorais fosse doada. Este ano, ganhamos 50 mil reais.” Metade do dinheiro foi para o É de Lei, centro de convivência de São Paulo que trabalha com redução de danos. A outra parte, para uma instituição que cuida de gestão de política de drogas na Bahia. “Quem me falou pela primeira vez sobre a música foi o João, meu filho. Ele me emociona.” E surpreende. “Eu nunca antecipei conversas com ele, mas tudo o que ele me pergunta a gente já conversou.” Dependência química foi uma delas.
“As pessoas têm uma droga de escolha, tem gente que desenvolve dependência com crack, jogo, anfetamina, compra, comida. Eu não gosto de falar o nome da minha droga de escolha. A primeira vez que fui a uma reunião no A.A. eu tinha 30 anos e havia um fotógrafo na porta. Não tive a chance de uma recuperação privada. Existe um estigma gigante em torno desse assunto e, ao falar sobre ele, quero passar uma mensagem: ‘Tenha coragem, deixe os outros dizerem, talvez você seja ridicularizado, julgado, mas só você vai valorizar a sua vida’.” Foi o que ele fez. “Eu não acordava bebendo, nunca bebi no trabalho, mas achei em um determinado momento que o álcool podia ser uma alternativa mais leve, mas é a droga mais pesada que conheci. Muita coisa acontece: acidente, violência doméstica, agressão verbal, arrogância. Tem gente que tem sabedoria para beber, mas tem uma parcela de 14 a 16% da população mundial que não sabe parar. E eu disse sim ao não. Passei a ter mais paciência com os meus erros. Se a angústia vem, eu escuto uma música, deixo passar. No passado, eu certamente beberia. Estou a cada dia mais distante das coisas que me perturbavam, sem beber há sete meses.”
Segundo Fabio, a chave dessa mudança foi o Ifá, tradição milenar da Nigéria que cultua os orixás. Curioso dos ritos, ano passado ele viajou ao Acre para conhecer uma aldeia indígena. Gosta do xamanismo, do budismo tibetano e de pensar a vida de forma espiritualizada. Mas foi no Ifá que, neste ano, encontrou algo que ele identifica como visceral. “Me trouxe uma consciência cósmica universal que foi transformadora. Sou filho de Obatalá – o rei do pano branco, que gosta do silêncio e tem a frequência da justiça, da clareza, da retidão.” Foram 21 dias de iniciação este ano. “Foi forte e vejo com clareza todos os benefícios que isso me trouxe.” Inclusive o amor. “Existencialmente o individuo é só. É impossível se encontrar no outro porque o mundo inteiro está dentro de nós. Mas meu encontro com a Ana Verena me joga num estado de poesia. Penso no universo me falando: ‘a partir dos seus sacrifícios, agora receba uma pessoa linda, você merece’.” Em um mês foram morar juntos. O casamento veio na sequência, uma cerimônia apenas para a família, em casa. De presente, pediram doações de cestas básicas, que doaram para o coletivo Amigos do Lixão, Jardim Gramacho. “Não era certo ou errado, apenas óbvio. Eu tenho dois filhos, sou muito próximo a eles, mas por morar longe não tive o convívio do cotidiano. Agora se abre uma nova estrada.” Fabio e Ana Verena querem filhos, mas plantam também outras sementes. “Tento estar no tempo presente, mas tenho metas e desejos e um deles é criar algo com a Ana Verena que envolva saúde e qualidade de vida, que misture saúde emocional e física. Faz dois meses que estamos debruçados para formular alguma engrenagem nesse sentido. Queremos estender aos outros os benefícios que nos fazem tão bem.”
Fabio se desconstrói, se reconstrói, se reinventa. Em público. “Todos gostam de serem olhados quando estão num momento de fertilidade. Ninguém gosta de ser julgado. Em 30 anos de vitrine, já pude experimentar todas as posições. Hoje, tudo isso me traz a confiança de que tenho a minha vida privada e a coletiva. Aprendi a separar.” Aprendeu também a importância da sua fala. “Estamos revendo todos os tipos de conceitos, discutimos o masculino e o feminino, lugares de fala, as questões de liberdade, de diversidade, valorização de outras culturas. Entendemos que limitações físicas devem ser respeitadas. Mas precisamos falar sobre dependência, esse assunto não pode ser um tabu atrelado à moral que as pessoas jogam para debaixo do tapete por vergonha, ele deveria ser discutido nas escolas. Onde esta meu coração?, série ainda sem data de estreia, discute isso. “A Letícia Colin vive uma médica dedicada que entra em um processo de compulsão. Eu sou o pai dela, uma família despreparada para lidar com aquilo. Mexeu muito comigo esse trabalho, poder falar sobre isso estando em uma outra posição.”
O mundo mudou, mas ainda é preciso muito. “Olhar para as questões do outro com mais respeito é o único caminho. Outro dia pedi um energético e a empresa que o entrega trouxe de brinde duas latas de cerveja. Imediatamente liguei para eles e expliquei que um alcoólico em dúvida, ao receber aquilo, pode ter a certeza. Eles se desculparam, me perguntaram o que eu queria. O que eu quero é uma reeducação geral, que as pessoas entendam que álcool não se oferece. No A.A., eles não dizem ‘mudou da água pro vinho, mas do vinho pra água’. Está intrínseco na nossa cultura que o celebrar leva álcool. Eu fiz isso a vida toda. Mas a maioria não entende o problema porque não passa por ele. Eu não tenho questão com quem bebe, respeito a liberdade e posso até te servir um drinque, mas só se você me pedir. Para 800 milhões de pessoas no mundo, o álcool é uma questão grave. Mas isso não é só um recado ou pedido a empresas e estabelecimentos, porque cabe a cada um repensar. Quando se vê um vídeo de uma pessoa caindo na rua, dando entrevista completamente alcoolizada, normalmente com milhares de visualizações, eu não vejo graça, me sinto completamente angustiado por ela.” Fabio se importa. “Eu acredito em cidadania. Este ano, fiz um grupo de estudo de teoria crítica de direitos humanos. Quis um mergulho mais fundo nisso.”
Ele acende um cigarro. “Eu fumo desde adolescente, está na hora de me despedir disso também, não combina mais com a vida que eu quero ter. Em dezembro, vou parar através de um tratamento espiritual. Mas não me arrependo, o cigarro foi um parceiro para mim.” Fabio parece olhar para o passado com tranquilidade, porque sabe que é feito dele também. Vai sem medo no presente e futuro. “Medo retrai, paralisa. O medo não me acompanha, mas eu ando atento porque sei que, se eu abrir uma porta, ela pode virar uma porteira gigante. A espiritualidade e as mudanças que tive a partir dela me clarearam a mente. Eu estava outro dia fazendo análise por Skype – depois de uma vida inteira sendo analisado – e quase peguei no sono no meio da sessão. Aí aconteceu uma coisa engraçada, meu analista me deu alta. Ele disse: “Relaxa, Fabio, tá tudo certo’.”