Já que nenhum dos sete irmãos do assistente financeiro Fábio Milantoni Caloi fez a gentileza de, ao longo dos anos, lhe puxar uma cadeira e oferecer um café, ele decidiu assumir sem reservas o papel que todos lhe atribuíam — o de pedra no sapato.
“Quero o que me cabe. Não vou desistir. Nem que eu leve 100 anos. O que eles [os irmãos] fizeram, ignorar uma pessoa, abandonar mesmo, tipo ‘quero você distante’, sem nem conversar, isso não se faz”, diz Fábio, 41.
Ele se refere à parte que, no seu entender, lhe é devida do patrimônio da empresa familiar que seu pai, Bruno Antônio Caloi (BAC), assumiu em 1955, fez prosperar e transformou em uma gigante. No auge, depois de inaugurar uma fábrica na Zona Franca de Manaus, vendiam-se 2 milhões de unidades por ano.
Fora dos casamentos
Morto em 2006, BAC reconhecia oficialmente duas famílias; em São Paulo, com Iracy Ambrósio Caloi, teve cinco filhos —- Bruno Júnior (Tito), Ricardo, Mara Hilda, Marília Amélia e Maricy; no Rio, com Leila de Castro, teve duas meninas: Bruna e Giselle. Bruno Caloi e Iracy nunca se divorciaram. As duas mães de seus filhos já morreram.
Fábio é tido como um “filho fora do casamento”. Sua mãe, morta em abril aos 75 anos, era a secretária Eunice Milantoni, que trabalhava na Caloi e engravidou de BAC em 1978.
Eunice Milantoni, em foto tirada no fim dos anos 1960
Imagem: Arquivo Pessoal
Mundo distante
Pelos cálculos de Fábio, ele nasceu dois anos depois de Bruna e quatro antes de Giselle. Para evitar comentários na empresa, Eunice se afastou, voltou a morar com os pais em Taubaté (a 140 km de SP), abriu um pequeno depósito de bebidas e criou o filho sozinha.
Bruno Caloi enviava uma mesada equivalente a R$ 3 mil, ligava de forma bissexta para saber notícias do garoto e, vez ou outra, mandava entregar um lançamento da Caloi em Taubaté. As recordações da época são remotas. “Nos encontramos pouquíssimas vezes. Duas ou três em Taubaté, as demais no aeroporto em São Paulo.”
“Eu sabia que meu pai era dono da Caloi, mas não tinha dimensão do que aquilo representava”, diz. Fábio recebeu a reportagem de TAB no apartamento de 60 m² de sua noiva, em Taubaté, onde mora. O imóvel de dois quartos fica em uma região residencial distante do centro e foi financiado em 30 anos.
Com a avó, em Taubaté, 1980
Imagem: Arquivo pessoal
Sobre piso frio
Na sala de piso de cerâmica clara, decorada com mobiliário básico, há uma foto dos noivos, em um porta-retrato grande, prateado, colocado em um móvel de canto. Assim que eu e o fotógrafo chegamos, Fábio ofereceu, com um gesto tímido, café, suco e bolachas. Mais tarde, mostrou o resto do apartamento.
A cama do casal ocupa quase todo o quarto. Como não há armário, eles guardam roupas e sapatos no outro dormitório. Em cima de uma prateleira há um monitor de 22 polegadas que eles usam para realizar alguns trabalhos com o computador e assistir a séries de TV.
As preferidas de Fábio são “Game of Thrones”, ” Breaking Bad” e “La Casa de Papel”, que viu inteiras. A última foi o épico “Outlander”.
“Game of Thrones”: entre as séries favoritas
Imagem: Divulgação
Pedaladas em falso
O auge da Caloi foi entre os anos 1970 e meados dos 1990. Após uma tentativa inglória de lidar com a escalada inflacionária, os malsucedidos planos econômicos e a concorrência externa, BAC passou a dar pedaladas em falso.
Entre 1997 e 1998, a perda de controle o levou a recorrer aos serviços do consultor Edson Vaz Musa, ex-presidente da multinacional Rhodia, contratado para sanear as contas. Debalde. Nos estertores, BAC pediu ao BNDES um vultoso empréstimo, que, além de não resolver a situação, se tornaria uma bola de neve impagável.
Em 1999, Bruno Caloi se viu forçado a se desfazer da empresa. Comprou-a o próprio Edson Vaz Musa. A intrincada negociação envolveu acordos mal alinhavados, que resultaram em uma pendenga judicial que se arrasta até hoje.
BAC recebeu R$ 1,8 milhão, a ser quitado em 30 meses. De acordo com as tratativas, Edson Musa deveria vender o terreno de 107 mil m² da fábrica, na Marginal Pinheiros, em São Paulo, e destinar um percentual do valor à família Caloi.
O que nunca ficou claro é quem pagaria a dívida do BNDES. Pelo acordo, Musa “empenharia os melhores esforços” para quitá-la. A expressão, vaga, dava a ele a possibilidade de empenhar muitos esforços ou nenhum. Na época, o montante era de R$ 35 milhões.
Toma lá, dá cá
Previsivelmente, Edson Musa logo informaria a Bruno Caloi que não conseguira negociar a dívida com o banco. O BNDES passou a cobrá-la de Caloi. Numa tentativa de resolver o imbroglio, Musa se propôs a assumir a dívida, desde que ficasse desobrigado a pagar qualquer porcentagem sobre a venda do terreno — que acabou sendo negociado para a VR Benefícios, empresa de vale-refeições do empresário Abram Szajman.
O valor declarado da venda foi de R$ 6,5 milhões, muito abaixo dos 50 milhões apontados por um laudo encomendado mais tarde pelos Caloi. Eles entraram na Justiça com uma ação para anular o preço da venda.
Enquanto isso,
Por aquela época, em Taubaté, Fábio Milantoni ficou sem notícias do pai. Abruptamente, os R$ 3 mil da mesada deixaram de ser enviados. Intrigado, ele ligou pela primeira vez para o escritório da Caloi.
Até descobrir que Bruno Caloi havia sofrido um derrame que deixou sequelas, Fábio teve oportunidade de verificar que não era bem-vindo. Os primeiros contatos com os irmãos, que não tinham ideia de sua existência, foram traumáticos. Tito, primogênito e orgulho do pai, mostrou-se esquivo.
“Tentei marcar um encontro com ele, mas ele não acreditou na história. Até trocamos algumas mensagens, e então ele acabou dizendo: ‘Olha, [seu caso] é uma coisa que não diz respeito a mim. Meu pai tem de resolver.”
Passados 15 anos, Fábio se mostra magoado com a falta de empatia do irmão. “O que custava dizer: ‘Olha, Fábio, a gente não tem aquele amor de irmão, não cresceu junto, mas, poxa, vem tomar um café em casa’. Podia ter isso, mas não existe. Agora, também, no nível de guerra em que as coisas chegaram, nem cabe mais.”
Ao TAB, por sua vez, Tito questiona: “Como você se sentiria se fosse eu, ou meus irmãos? Já estive várias vezes com ele e tentamos ajudá-lo, pagamos consulta médica, mas parece que sua intenção está fora da nossa realidade”.
Mesmo quando ri, Fábio parece sério. Ele conta as ajudas que recebeu dos irmãos.
“Em um Natal eles me mandaram uma cesta básica. Não era de Natal, era básica. Com arroz, feijão e tudo mais. Em outra ocasião, quando eu estava desempregado, o Tito ficou de conseguir um cargo de vendedor em uma franquia de sapatos de um amigo dele. Recusei não pelo cargo, mas porque não tenho habilidade com vendas. Poderia assumir um posto na (fábrica de bicicleta) Tito Bikes [criada em 2009, que mais tarde passou a chamar-se Groove], mas ele me informou que só tinha cargos ‘políticos’ [destinados a pessoas influentes]. Aí, falei com Maricy para ver se ela conseguia um desconto em uma bicicleta. Ela respondeu que eu poderia passar na loja; os vendedores estavam avisados de que tinham de dar 10% na compra à vista.”
TAB ligou diversas vezes para o número de Maricy, mas sempre caiu na caixa postal.
Fábio, no Natal de 1983
Imagem: Arquivo Pessoal
Sem conversa
A segunda da família a ser procurada por Fábio foi Leila, a mãe das irmãs do Rio. Ele diz que ela o rechaçou de forma ainda mais desprezível. Inicialmente, por telefone, desconfiou da história. Fábio descobriu o endereço dela, e a procurou sem avisar.
Leila então promoveu uma conversa monitorada do pai com o filho. “Ele [Bruno] apareceu em uma cadeira de rodas, mal pode dar a mão para me cumprimentar, disse que não podia fazer mais nada por mim. A gente não tinha muito assunto, mesmo.”
Logo, a mulher providenciou para que levassem Bruno da sala, e, em seguida, procurou livrar-se de Fábio. “Ela jogou R$ 150 em cima da mesa, dizendo que era para a passagem, e me conduziu à porta da saída.” Ele não pegou o dinheiro.
Em 2005, percebendo que precisaria de um elemento concreto para se impor, Fábio entrou na Justiça com um pedido de exame de paternidade. Enfrentou uma via crúcis de mais de 10 anos.
Seus irmãos jamais compareceram ao laboratório para realizar o exame de DNA. A ação de paternidade só foi encerrada em 2017, depois que o juiz determinou a exumação do corpo de Bruno Caloi.
Dois dias depois que Fábio Milantoni conquistou o direito de usar o sobrenome Caloi, recebeu uma intimação judicial. Informava que, como herdeiro de BAC, acabava de assumir sozinho uma dívida de quase R$ 250 milhões…
A Camiseta com a imagem de uma bicicleta: misto de ironia e obsessão
Imagem: Fernando Moraes/UOL
Acordo exclusivo
O credor era Edson Vaz Musa. Em 2013, para se livrar da cobrança do BNDES, o empresário comprou a dívida do próprio banco e passou a cobrá-la dos herdeiros de Bruno Caloi — incluindo Fábio.
Dispostos a encerrar o débito milionário, os irmãos Caloi assinaram um acordo com Musa, segundo o qual ele os anistiaria da dívida, e, em troca, se desincumbiria de remunerá-los com um percentual da venda do terreno.
Como ninguém chamou Fábio para participar do acordo, ele passou a ser o único devedor de um montante que, em 2020, chegou a quase R$ 350 milhões. Com um rendimento mensal de R$ 1,5 mil, o irmão renegado dos Caloi levaria algumas vidas para quitá-lo.
Em 3 de novembro de 2020, graças a uma decisão judicial que extinguiu uma parte da dívida, Fábio passou a dever apenas R$ 300 milhões. O juiz Roberto Correa, da 8ª Vara Cível do Rio de Janeiro, entendeu que o acordo dos irmãos Caloi se estende a Fábio, mesmo sem sua assinatura. Correa se baseou no parágrafo 3 do artigo 844 do Código Civil, segundo o qual um acordo feito em relação a uma dívida solidária se estende a todos os co-devedores.
Para o advogado Cristiano Zanin Martins, que defende Fábio, nem Edson Musa nem os irmãos de seu cliente levavam a sério a cobrança. “Eles sabem que é um absurdo. A ideia é pressioná-lo para que desista da ação aberta para investigar o patrimônio da família, que pode trazer à tona acordos espúrios do passado. Por mais que tenha havido desavenças na Justiça entre Musa e os Caloi, em algum momento os interesses de ambos convergiram.”
Confusão proposital
Ao citar a dívida da empresa no processo, o BNDES fala no “esvaziamento do patrimônio” da Caloi de São Paulo e da transferência de imóveis para a fábrica da Zona Franca de Manaus, que concentrou a operação empresarial. O banco se refere às negociações como “uma confusão proposital” e uma “inegável promiscuidade patrimonial”.
As empresas que controlavam a Caloi — a BAC Cinco e a Gible —, passaram a ser comandadas por offshores. Por meio das duas, Bruno passou suas ações para Musa, que, em 2013, vendeu 70% da fábrica de Manaus para a canadense Dorel Industries. O resto foi negociado em 2017.
A reportagem deixou recados no escritório de Ruy Janoni Dourado, advogado de Musa, mas não houve retorno.
Defesa poderosa
Cristiano Zanin Martins é o ídolo de Fábio Caloi. Ele procurou o advogado depois de assistir a uma entrevista com ele na TV. “Para mim, ele era um personagem tão inatingível quanto meu pai, quando eu era pequeno, ou a própria Caloi.”
Para sua surpresa, o advogado ligou alguns dias depois e marcou um encontro com ele. “Em cima da mesa da sala de reunião, havia pilhas de pastas. O doutor Zanin já sabia tudo sobre o processo.” O advogado defende Fabio Caloi gratuitamente. Ficou acertado que só receberá honorários em caso de vitória na ação.
Pedro Julio de Cerqueira Gomes, advogado de Tito Caloi, se queixa de que só interessa à mídia publicar a história do “pobre menino rico”. De acordo com Gomes, Fábio conta com uma “grande vantagem”. “Como não há risco de sucumbência [cobrança de honorários], ele pode ficar no processo por dez anos.”
“Meus clientes pagam honorários, e honorários caros. Têm o maior interesse em esclarecer todos os detalhes e resolver isso o mais rapidamente possível.”
Tito, por sua vez, reclama da exposição que o caso trouxe para sua família. “Somos todos gente que trabalha, leva sua vida. Sempre estivemos dispostos a colaborar.”
Fábio: “Colaborar? Foi por isso que eles se recusaram sistematicamente, por mais de dez anos, a fazer o teste de DNA?”
Fábio não sabe precisar quando nem onde essa foto de seu pai foi tirada: diz que a encontrou entre os guardados de sua mãe.
Imagem: Arquivo Pessoal
Vida civil bloqueada
Gomes lamenta especialmente a “ação irresponsável dos R$ 300 milhões” [valor provisório que caberia a Fábio, proposto pelo advogado anterior dele, Ricardo Jobim, com base no patrimônio estimado da família].
O advogado diz que “a ação bloqueia a vida civil de 19 réus” — filhos e netos de Bruno Antônio Caloi. “Se eles precisarem de um financiamento no banco, para abrir um negócio pequeno, não vão ter. Não conseguem certidão nem para vender um apartamento no Tatuapé [bairro da zona leste de São Paulo]. Nada”, diz.
Fábio dá uma de suas risadas amargas e diz: “Eu fico fora de um acordo assinado por eles, com uma dívida impagável, sem poder abrir um carnê para comprar uma TV, e os pobres coitados reclamam de não conseguirem financiamento para comprar um apartamento”.
Ele conta que, para tentar fazê-lo desistir do processo, ofereceram dinheiro. “A quantia era até razoável para o meu padrão de vida. Mas ninguém oferece R$ 800 mil do nada. Eu devolvo a questão do advogado deles: por que esse valor? Eles que deixem a Justiça dizer a quantia exata.”
Confronto evitável
Para Zanin, “tudo isso poderia ser evitado”. “Eles [os filhos reconhecidos por Bruno Caloi] estão certos. De fato, a ação nem deveria existir, se os irmãos de Fábio cumprissem a lei e levassem ao inventário todo o patrimônio do pai que deve ser repartido entre os herdeiros”.
O processo de investigação de patrimônio corre em segredo de Justiça, mas Zanin afirma que existem indícios robustos de que houve “antecipação da legítima” (bens passados por BAC aos filhos, antes de morrer), e valores destinados a eles após o falecimento.
“O Tito está na posse da administração da herança, mas até hoje não descreveu no inventário os bens que integram o espólio [que devem ser inventariados e divididos entre os herdeiros].” Gomes garante que o patrimônio da família está zerado.
Dicas de Aspen
Antes de posar para a foto que abre este texto, Fábio aciona em seu celular uma espécie de dossiê com notícias de jornais e sites que parecem desmentir a bancarrota de seus irmãos.
Em uma delas, Tito aparece dando dicas sobre Aspen, estação de esqui no Colorado, EUA. Publicado em 2009, o texto informa que “Tito vai todos os anos à estação, e cada dia explora uma montanha diferente”.
Em outro link, de 2012, a notícia é o casamento de Bruna Caloi (filha de Tito com Ana Maria Diniz) no clube de polo Helvetia, que reúne entre seus sócios algumas das famílias mais ricas do Brasil.
Tito Caloi em Aspen, em post publicado no site Glamurama
Imagem: Reprodução
Pergunto a Fábio se ele monitora a vida social dos irmãos. Ele responde sem meias palavras: “Já fui muito atrás disso. Parei, porque me fazia mal”. Diante de tudo o que vai sendo dito, interpreto a camiseta que o entrevistado usa, com a imagem de uma bicicleta, como um misto de ironia e obsessão. Ele reconhece que a mágoa o leva a dormir mal.
O fotógrafo Fernando Moraes pergunta se Fábio tem bicicleta. Tem. Caloi. Um modelo T-Type, preto, aro 26, 21 marchas. Diz que comprou há cerca de dois anos, de uma amiga, por R$ 400. “Foi na mesma época em que o Tito ofereceu os 10% na loja dele.”
Fonte: TAB/UOL