Por mais de três meses, o paciente lutou contra a covid-19. Seu sistema imunológico já estava em péssimo estado quando ele pegou o vírus — em meio a um tratamento para combater um linfoma, tipo de câncer do sangue, que exauriu algumas de suas células imunológicas.
Com ele estava com poucas das defesas habituais do organismo contra infecções, o vírus foi capaz de se espalhar relativamente sem controle pelo seu corpo.
Enquanto os médicos tentavam ajudar o paciente idoso a lutar contra a covid-19, deram a ele plasma sanguíneo coletado de pessoas que já haviam se recuperado da doença. Contidos nesse líquido marrom-leitoso — também conhecido como plasma convalescente —, estavam anticorpos contra o vírus que poderiam ajudar a neutralizá-lo.
Ao longo de 101 dias de tratamento, os médicos do Addenbrookes Hospital em Cambridge, no Reino Unido, coletaram 23 amostras com swab (haste semelhante a cotonete). Cada amostra foi enviada para um laboratório próximo para ser analisada.
Mas quando os virologistas examinaram o material genético do vírus nas amostras, notaram algo surpreendente — o vírus causador da covid-19 estava evoluindo diante de seus olhos.
“Vimos algumas mudanças notáveis no vírus ao longo desse tempo”, diz Ravindra Gupta, especialista em doenças infecciosas do hospital e microbiologista clínico da Universidade de Cambridge, que analisou as amostras do paciente.
“Vimos mutações que pareciam sugerir que o vírus estava dando sinais de adaptação para evitar os anticorpos do tratamento de plasma convalescente. Foi a primeira vez que vimos algo assim acontecendo em uma pessoa em tempo real.”
Quase um ano após o início da pandemia de covid-19, a questão das mutações ganhou força. Novas variantes capazes de se espalhar mais rapidamente estão surgindo e levando a questionamentos inevitáveis sobre até que ponto podem tornar as vacinas recém-aprovadas menos eficazes.
Até o momento, há poucas evidências de que isso possa acontecer, mas os cientistas já estão começando a analisar como o vírus sofrerá mutação no futuro — e se poderão ser capazes de evitar isso.
Vejamos o que eles aprenderam até agora.
Entre as mutações que Gupta e seus colegas identificaram, estava a eliminação de dois aminoácidos — conhecidos como H69 e V70 — na proteína spike, localizada na parte externa do vírus causador da covid-19. Esta proteína desempenha um papel fundamental na capacidade do coronavírus de infectar as células.
A cápsula oleosa que envolve a maior parte do vírus é cravejada com essas espécies de espinhos (spikes) projetados para fora, fazendo com que pareça uma coroa quando observado por meio de um microscópio eletrônico. É essa aparência que dá nome à família dos coronavírus — corona significa “coroa” em latim.
E os spikes são a principal maneira pela qual a covid-19 reconhece as células que pode infectar, eles ajudam o vírus a penetrá-las.
Quando Gupta e sua equipe examinaram mais de perto a exclusão na proteína spike que haviam identificado, os resultados se mostraram preocupantes.
“Fizemos alguns experimentos de infecção usando vírus artificiais, e eles revelaram que a mutação H69/V70 aumenta a infecciosidade em duas vezes”, diz Gupta.
Isso levou os pesquisadores a vasculhar os bancos de dados genéticos internacionais de covid-19. Foi quando descobriram que algo mais alarmante estava acontecendo.
“Queríamos ver o que estava acontecendo em todo o mundo e nos deparamos com esse grande grupo de sequências em expansão [H69 / V70] no Reino Unido”, conta o especialista.
“Quando olhamos mais de perto, descobrimos que havia uma nova variante causando um grande surto.”
Quando fizeram essa descoberta no início de dezembro do ano passado, especialistas em doenças infecciosas em outras partes da Inglaterra estavam se esforçando para entender o rápido aumento do número de casos em Londres e no sudeste da Inglaterra, apesar do lockdown nacional.
Eles começaram a notar algo estranho nos resultados dos testes de covid-19.
A principal ferramenta de diagnóstico da doença são os testes PCR (sigla para reação em cadeia da polimerase), que buscam traços do material genético do vírus nas amostras coletadas.
Normalmente, ele foca em três partes do vírus para confirmar a presença de uma infecção.
Mas um desses alvos estava ficando cada vez mais negativo em amostras de regiões da Inglaterra onde o número de casos estava em rápida expansão, enquanto os outros dois alvos continuavam a funcionar nos testes.
“Não perdemos casos, mas é incomum ver duas (partes) dos testes funcionando, mas uma terceira não”, afirmou Wendy Barclay, virologista do Imperial College London e membro do grupo de conselheiros científicos sobre vírus respiratórios novos e emergentes do Reino Unido ao programa Today, da BBC, em 22 de dezembro.
O fragmento do vírus que esta parte do teste PCR visava era uma sequência da proteína spike. Quando os cientistas investigaram mais a fundo, descobriram que o vírus nessas amostras havia sofrido uma mutação — a mesma H69/V70 identificada por Gupta —, o que significava que o teste PCR, às vezes, não conseguia detectá-lo.
Junto com essa mudança genética, eles também encontraram 16 outras mutações que alteraram as proteínas virais que haviam codificado, incluindo várias na proteína spike. O que eles descobriram foi uma nova linhagem do vírus da covid-19 que sofreu várias mutações em um período de tempo relativamente curto.
E chamaram a nova linhagem de B117 — a variante britânica da covid-19, também conhecida como VOC 202012/01 no fantástico mundo das nomenclaturas do coronavírus. Ela deixou um rastro por todo o Reino Unido e se espalhou para 50 outros países em meados de janeiro.
O surgimento dessa nova variante — que se estima ser 50%-75% mais transmissível do que a versão original do vírus — junto a outras que estão sendo detectadas agora, como as variantes sul-africana e brasileira, revelou como o coronavírus está sofrendo mutações à medida que a pandemia avança.
Também levantou preocupações sobre como pode continuar mudando no futuro, à medida que tentamos combatê-lo com vacinas.
“Para mim, isso parece um vislumbre do futuro, onde estaremos em uma corrida armamentista contra esse vírus, assim como estamos com a gripe”, afirma Michael Worobey, biólogo evolucionista viral da Universidade do Arizona, nos EUA.
A cada ano, a vacina contra a gripe precisa ser atualizada conforme seu vírus sofre mutações e se adapta para driblar a imunidade já presente na população, explica Worobey. Se o coronavírus demonstrar habilidades semelhantes, pode ser que teremos que adotar táticas parecidas para mantê-lo longe, atualizando regularmente as vacinas.
Muitos acreditam que as empresas farmacêuticas já deveriam estar atualizando suas vacinas para atacar as versões mutantes da proteína spike do vírus.
Mas será que os padrões de mutação que os cientistas estão vendo surgir ao redor do mundo podem oferecer uma pista sobre como o vírus continuará a evoluir?
“É difícil especular, mas é interessante que, de repente, parece haver muitas mutações surgindo que podem estar associadas ao escape imunológico ou reconhecimento imunológico”, diz Brendan Larsen, estudante de doutorado que trabalha com Worobey.
Recentemente, ele identificou uma nova variante do vírus da covid-19 circulando no Arizona que tem a mutação H69 / V70 observada em várias outras versões do vírus. Embora ainda esteja se espalhando em um nível relativamente baixo lá e em outros estados americanos, isso sugere que essa mutação em particular está ocorrendo de forma independente ao redor do mundo, diz Larsen.
Essa ocorrência repetida da mesma mutação em diferentes variantes dá algumas pistas sobre o que está acontecendo — como o vírus se espalhou por milhões de pessoas, ele pode estar enfrentando pressões evolutivas semelhantes que o estão levando a mudar de maneiras específicas.
“Por si só, elas provavelmente terão um impacto menor no geral”, diz Larson. “Mas, juntas, todas essas mutações diferentes podem tornar mais difícil para o sistema imunológico reconhecer o vírus.”
Isso pode fazer com que mais pacientes contraiam a doença duas vezes — e talvez também signifique que as vacinas precisem ser alteradas.
“Mesmo uma quantidade relativamente pequena de escape imunológico pode tornar mais difícil alcançar a imunidade coletiva”, acrescenta Worobey.
Pesquisadores em Illinois, nos EUA, também identificaram recentemente outra nova variante, chamada 20C-US, que tem uma série de mutações únicas e específicas que podem alterar a capacidade do vírus de se replicar uma vez dentro das células humanas.
E também apresenta uma mutação perto de uma região da proteína spike que acredita-se ter sido crucial para permitir que o vírus saltasse entre espécies, chegando aos humanos no fim de 2019.
Essa região, conhecida como local de clivagem, permitiu ao vírus sequestrar uma importante enzima que opera no corpo humano. A enzima corta a proteína spike neste ponto, fazendo com que ela se abra e revele sequências ocultas que a ajudam a se ligar mais fortemente às células do trato respiratório humano, entre outras.
De acordo com os cientistas, uma mutação próxima a essa região pode alterar ainda mais esse comportamento.
Os pesquisadores por trás do estudo afirmam que a linhagem 20C-US está se espalhando rapidamente pelos EUA desde junho — e preveem que poderá se tornar em breve a variante dominante do vírus no país.
Recentemente, cientistas da Universidade de Manitoba, em Winnipeg, no Canadá, também identificaram o surgimento de duas variantes que se espalharam pelo mundo e estão associadas a “altas taxas de mortalidade” em comparação com o vírus anterior.
Uma apresenta uma mutação chamada V1176F na proteína spike, que ocorre junto com outra mutação denominada D614G.
A primeira letra dos nomes dessas mutações indica o aminoácido que foi substituído, o número é sua localização na proteína, e a última letra é o novo aminoácido que apareceu naquele local.
A mutação D614G sozinha apareceu relativamente no início da pandemia na Europa e causou um aumento drástico na carga viral compartilhada pelos pacientes infectados, o que ajudou o vírus a se espalhar mais rapidamente.
O acréscimo da mutação V1176F pode alterar esse comportamento ainda mais, dizem os pesquisadores canadenses, e ela apareceu em vários países de forma independente, sugerindo que oferece uma vantagem ao vírus.
A outra variante que eles identificaram apareceu rapidamente na Austrália e carrega a mutação S477N, que parece ter aumentado a capacidade do vírus de se ligar a células humanas.
Os pesquisadores alertam que essas duas novas mutações “podem representar problemas de saúde pública no futuro” se continuarem a se espalhar e proporcionar uma vantagem ao vírus.
Eles acrescentam que a covid-19 parece “estar evoluindo de forma não aleatória, e os hospedeiros humanos modelam as novas variantes com aptidão positiva para poder facilmente se espalhar pela população”.
Esses sinais de adaptação do vírus não são totalmente surpreendentes para os cientistas. Na maioria dos vírus e bactérias causadores de doenças, o uso de tratamentos e vacinas faz com que desenvolvam maneiras de escapar deles para que possam continuar a se espalhar.
Aqueles que desenvolvem resistência a um tratamento ou conseguem se esconder do sistema imunológico sobreviverão por mais tempo para se replicar e, assim, disseminar seu material genético.
“Não vejo razão para que esse processo seletivo evolutivo seja diferente em uma pandemia como a de Sars-CoV-2 [o vírus causador da covid-19], em comparação com uma epidemia geograficamente localizada”, diz Carolyn Williamson, chefe do departamento de virologia da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e uma das pesquisadoras que identificou a variante sul-africana de rápida propagação em dezembro.
“Pode-se especular que o vírus sendo exposto a diferentes pressões seletivas em diferentes regiões do mundo, junto a sua rápida disseminação, poderia fazer essas propriedades mais favoráveis surgirem mais rapidamente, mas nós realmente não sabemos.”
É claro que pode haver outras versões preocupantes da covid-19 circulando em populações onde o sequenciamento genético necessário para detectá-las não é facilmente acessível. Uma das razões pelas quais o Reino Unido identificou a variante B117 logo foi pelo fato de ser líder mundial em testes e sequenciamento.
“Se novas variantes surgirem em um país onde não há muito sequenciamento de genoma, pode ser um problema real”, diz Larson.
Um grupo de cientistas chineses usou vírus artificiais para testar mutações na proteína spike que poderiam levar o vírus a se tornar resistente a anticorpos retirados de pacientes que se recuperaram da covid-19.
Eles descobriram cinco mutações que fizeram isso, mas uma em particular — N234Q — aumentou drasticamente o nível de resistência a anticorpos. Mas isso ainda não foi visto em nenhuma das variantes que despertam preocupação circulando ao redor do mundo.
O estudo dele, no entanto, também oferece alguma esperança, uma vez que a identificação dessas mudanças pode ser útil no desenvolvimento de futuras vacinas.
Mas, à medida que os cientistas observarem mudanças no vírus nos próximos meses, eles também estarão perfeitamente cientes das inúmeras tragédias pessoais que estão por trás dos bancos de dados de genomas de vírus e gráficos que mostram sua disseminação. Mais de dois milhões de pessoas perderam a vida em decorrência da covid-19 até agora.
Entre elas, está o homem idoso que tinha um linfoma e foi tratado pelos colegas de Gupta no Addenbrookes Hospital, em Cambridge.
“Ele recebeu um diagnóstico de câncer terminal, mas conseguiu sobreviver por 10 anos até a covid-19 aparecer”, diz Gupta.