‘Distribuição desigual de vacinas vai permitir contágios e mutações do coronavírus pelo mundo’

A corrida global por uma vacina contra a covid-19 foi provavelmente uma das mais decisivas e frenéticas de nosso tempo. Em menos de um ano, companhias farmacêuticas, governos, centros de pesquisa e empresas afins de todo o mundo se uniram e materializaram imunizantes capazes de conter as infecções e mortes e tirar o mundo do isolamento.

Mas agora que as autoridades sanitárias de muitos países estão se esforçando para administrar o maior número possível de doses, surgem alertas de que a forma com que as vacinas estão sendo distribuídas representa outro grave perigo para a saúde pública mundial, como apontou um estudo da Universidade Duke, nos Estados Unidos, que se tornou referência no assunto.

Andrea Taylor lidera um projeto de pesquisa sobre distribuição global de vacinas Foto: Reprodução

Andrea Taylor lidera um projeto de pesquisa sobre distribuição global de vacinas Foto: Reprodução

Isso porque os países mais ricos já compraram a maior quantidade de vacinas que serão produzidas neste ano, enquanto os mais pobres não terão doses para aplicar nem em suas populações mais vulneráveis. Estima-se que cerca de 90% das pessoas em quase 70 países de baixa renda terão poucas chances de serem vacinadas em 2021.

Especialistas temem que, se tudo continuar como está, o vírus pode continuar a sofrer mutações, tornar as vacinas atuais menos eficazes e produzir consequências econômicas, políticas e morais devastadoras, como alerta Andrea Taylor, diretora de pesquisas no Centro de Inovação em Saúde Global da Duke, que monitora a distribuição de vacinas em todo o mundo.

O projeto, denominado Launch and Scale Speedometer, analisa dados globais sobre vacinas e terapias para combater a pandemia e seus resultados servem de alerta para políticos, acadêmicos e especialistas em saúde pública.

BBC News Mundo – Quais foram as principais descobertas do projeto?

Andrea Taylor – Descobrimos que os países ricos compraram a maior parte das vacinas contra a covid-19, enquanto os mais pobres lutam para obter vacinas suficientes para cobrir até mesmo suas populações mais vulneráveis. Identificamos essas lacunas pela primeira vez em outubro de 2020 e ela ainda permanece, o que é muito preocupante.

Os países ricos alavancaram seu poder de compra e investimentos no desenvolvimento de vacinas para conseguir um assento na primeira fila, e depois compraram a maioria das vacinas antes dos outros países. Os países de alta renda têm 16% da população mundial, mas atualmente respondem por 60% das doses de vacina que foram vendidas.

Como a capacidade de manufatura global é limitada, isso deixa menos doses disponíveis para todos os outros, pelo menos no curto prazo. Os países de renda baixa e média não conseguiam fazer compras em grande quantidade ou comprar vacinas quando o risco de fracasso em seu desenvolvimento ainda era muito alto, então, eles não tiveram acesso prioritário.

Esses países estão claramente em perigo agora. A principal preocupação é que os países de renda baixa e média simplesmente não tenham vacinas suficientes e que as pessoas que vivem nos países ricos sejam protegidas enquanto o vírus se espalha nos países mais pobres.

BBC News Mundo – Quais são os principais riscos disso?

Taylor – A distribuição desigual de vacinas é perigosa para todos. Os resultados podem ser catastróficos tanto para a saúde quanto na economia. Isso causará muito mais mortes em todo o mundo, especialmente entre nossos vizinhos mais vulneráveis.

Mas também significa que o vírus continuará a se espalhar e sofrer mutações, aumentando o risco de que nossas vacinas não combatam efetivamente as novas cepas. Se os países ricos vacinarem suas populações, enquanto permitem que o vírus se espalhe para outros lugares, eles podem descobrir que não estão protegidos das cepas que surgirem.

Também devastará nossas economias. Modelos recentes mostram que se os países ricos vacinarem suas populações antes de garantir o acesso aos países mais pobres, a devastação econômica custará entre US$ 1,5 trilhão e US$ 9,2 trilhões e pelo menos metade do prejuízo será dos países ricos.

BBC News Mundo – Alguns dos países que teriam de esperar anos para vacinar toda a sua população são agora alguns dos lugares onde muitas vacinas estão passando por estudos clínicos para aferir a eficácia e a segurança desses imunizantes. Como entender essa aparente contradição?

Taylor – Ficou claro desde o início que os países de renda baixa e média teriam dificuldade em comprar vacinas. Vimos vários destes países aproveitando tanto a capacidade de fabricação quanto a infraestrutura dos testes clínicos para tentar garantir as ofertas de vacinas.

Líderes de vários destes países nos disseram que estavam trabalhando para atrair testes clínicos na esperança de que isso os ajudasse a negociar um acordo de fornecimento com o desenvolvedor da vacina. Em alguns lugares, essa estratégia foi bem-sucedida, mas em outros, não.

BBC News Mundo – É o caso da América Latina, onde também vimos muitos governos que tomaram a decisão de comprar algumas vacinas (como a russa Sputnik), mesmo quando os processos de ensaios clínicos e os resultados estavam sendo questionados por especialistas em saúde pública. A falta de acesso a outras vacinas aprovadas e mais seguras poderia levar os países menos desenvolvidos a administrar doses que não foram exaustivamente testadas?

Taylor – Os líderes desses países estão tomando decisões de saúde pública muito difíceis, e a estimativa muda a cada semana, conforme o fardo da doença muda e novas variantes são descobertas.

Há alguns meses, ouvimos líderes em muitos países menos desenvolvidos dizerem que não aceitariam uma vacina sem dados sólidos de eficácia.

Mais recentemente, estamos vendo esses mesmos países comprando vacinas que não divulgaram dados robustos, mas que podem estar em um avião 24 horas após o fechamento do negócio.

Claro, isso é um risco e não é uma opção tão boa quanto usar uma vacina que foi rigorosamente revisada e aprovada por uma autoridade regulatória estrita.

Mas se sua escolha como líder é entre algo e nada, provavelmente algo é melhor.

Por outro lado, há relatos de países como Canadá ou EUA, que compraram doses suficientes para vacinar toda a sua população várias vezes. Qual é a lógica por trás desse “entesouramento”?

Muitos países ricos compraram vacinas suficientes para cobrir suas populações muitas vezes. Isso fazia sentido no mundo em que vivíamos seis meses atrás, porque ainda não sabíamos qual das vacinas candidatas, se alguma, chegaria ao mercado.

A maioria dos países ricos comprou doses de vários candidatos na esperança de que, se um ou dois deles chegassem ao mercado, eles teriam 100% de cobertura de sua população.

Como se viu, as vacinas covid-19 tiveram um sucesso além das expectativas. Já temos algumas no mercado e outras sairão nos próximos meses.

Na realidade, nenhum país rico tem doses adicionais de vacina neste estágio, mas as vagas de fabricação prioritárias para 2021 foram reservadas para a maioria das vacinas contra covid-19.

Isso significa que os países que compram agora podem ter que esperar meses ou até mais um ano.

BBC News Mundo – Uma das alternativas para essa situação é a Covax, esforço global que envolve países ricos e menos desenvolvidos pelo acesso equitativo às vacinas contra o covid-19. Quais seriam os principais desafios desta proposta?

Taylor – O principal desafio que a Covax enfrenta é o tempo.

Embora a iniciativa tenha tido sucesso na compra de vacinas, garantir a entrega em paralelo com o lançamento da vacina em países ricos é muito mais difícil.

As nações de baixa e média renda que contam com a Covax como uma parte importante de sua estratégia de vacinas precisam das doses agora, mas muitos dos espaços de fabricação prioritários já foram reservados por países ricos que fizeram acordos bilaterais.

Também é importante observar que a Covax é necessário, mas não suficiente.

Com 20% de cobertura populacional, é uma peça crítica da solução, mas os países pobres continuarão a enfrentar enormes lacunas no acesso às vacinas.

Temos que nos preocupar com a cobertura populacional restante de 40-50% necessária para alcançar nesses países a imunidade de rebanho (patamar necessário para que o vírus tenha dificuldade de se espalhar em meio a tantas pessoas imunizadas).

BBC News Mundo – Suponha que eu seja o primeiro-ministro de uma nação muito rica. Que argumento você me daria para me convencer de que não devo comprar doses suficientes para vacinar toda a minha população, porque assim fazendo, outros países menos desenvolvidos não terão acesso a essa vacina? Por que devo me preocupar com eles em vez de vacinar todos os meus concidadãos?

Taylor – É realmente um argumento para autopreservação. Ao garantir que outros países também tenham acesso à vacina, você está garantindo o sucesso da sua.

Os líderes dos países ricos devem garantir que suas populações sejam cobertas o mais rápido possível e seria considerado um grande fracasso se não o fizessem.

Eles também devem garantir que todos os países tenham acesso às vacinas ao mesmo tempo para cobrir suas populações mais vulneráveis, o que ajudaria a proteger a saúde e os serviços de emergência e reduzir as mortes.

Modelos recentes mostram que deixar de fazer isso pode devastar as economias das nações ricas e criar uma situação em que nunca estaremos livres desse vírus.

Muitos países, incluindo Canadá, Reino Unido e bloco da União Europeia, declararam seu compromisso de doar as doses excedentes para outros países, mas o tempo realmente faz diferença.

Os líderes dos países ricos devem começar a doar doses aos países mais pobres, continuando a vacinar suas próprias populações.

A Noruega já liderou e afirmou que doará doses paralelamente ao lançamento de sua própria vacina.

Os líderes dos países ricos devem escolher melhores resultados de longo prazo, correndo o risco de perdas políticas de curto prazo e encontrar maneiras de transmitir a importância e os benefícios disso para suas populações.

Isso requer uma liderança mais forte do que a que vimos até agora, mas, sem ela, mesmo os cidadãos dos países ricos se sairão muito pior.

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