Desde que a pandemia do novo coronavírus se espalhou pelo mundo, o sonho de muita gente é ficar imune à doença e, para isso, se vacinar.
Em um acontecimento inédito na história, em menos de um ano já há cinco vacinas aprovadas e mais de 200 imunizantes em fase de teste.
O que deveria ser motivo para comemorar, no entanto, tornou-se também uma preocupação. O número de pessoas que não pretende se vacinar contra a Covid-19 no Brasil só aumenta.
Em agosto, uma pesquisa do Instituto Datafolha indicou que 9% dos brasileiros resistiam à possibilidade de receber uma vacina testada e aprovada.
O índice subiu mais nos últimos meses e chegou a 22% no início de dezembro, conforme levantamento mais recente do mesmo instituto.
Por trás dessa tendência, há um conjunto variado de motivos e fatores que se combinam para minar a credibilidade das vacinas.
Os questionamentos vão da eficácia dos imunizantes ao temor de efeitos adversos, passando pela assimilação de informações e notícias falsas de forma assustadora.
A atriz paulistana Bianca Lopresti, de 29 anos, não pretende entrar na fila da vacinação para a Covid-19.
“Eu não tomaria nesse momento nem daria para minha filha”, diz, referindo-se à menina de pouco mais de 1 ano de idade. Os motivos? Nenhum que envolva técnica e ciência. “A gente acaba terceirizando nossa responsabilidade sobre a saúde, como se a vacina fosse a salvação.”
Explica: “Prefiro cuidar preventivamente. Acredito que o risco é menor do que o de tomar uma vacina que pode adoecer um corpo saudável por ser um processo de fora para dentro” [nota da editora: salvo raríssimos casos adversos, vacinas nunca adoecem o corpo contra o vírus que ela pretende imunizar].
A atriz também questiona a indústria farmacêutica pela oferta de vacinas para doenças que, segundo ela, não estão mais circulando, como o sarampo e a poliomielite.
O que é mentira: justamente porque as pessoas pararam de acreditar em vacinas para doenças que já haviam sido erradicadas, como o sarampo, que o Brasil vive um surto delas.
Em setembro de 2016, um certificado da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) atestava que o país era a primeira zona livre do sarampo em todo o mundo. Em 2019, segundo a Organização Mundial da Saúde, o número de casos confirmados era de 13.489.
O conceito de que o estilo de vida mais saudável aumenta a proteção contra doenças encontra eco na cidade mineira de São Lourenço, onde vive a artesã Branca Freitas, de 41 anos.
Desde que o vírus começou a circular de forma intensa no Brasil, Branca mudou-se com a filha pequena, de 4 anos, para a casa dos pais, ambos maiores de 60 anos. Lá já morava seu filho mais velho, um estudante de 20 anos.
Na propriedade há uma marcenaria, onde o pai trabalha como luthier e Branca passou a produzir brinquedos de madeira. A mãe tem uma tapeçaria no local.
Só Branca sai para fazer compras e todos se sentem protegidos. Ninguém na família pretende tomar a vacina contra a Covid-19: “Não acreditamos nessa vacina. Não só nessa. Desconfiamos de todas as vacinas. E tem uma história familiar. Meus pais não me vacinaram quando eu era criança por causa do estilo de vida. Nunca tive nenhuma doença séria. Só tomei uma dose contra a poliomielite, na escola, mesmo assim porque eles não foram consultados antes. A segunda vez foi quando fiz um curso de enfermagem, em 2000, algo obrigatório”.
O que Branca não diz é que ela não ficou doente, muito provavelmente, pelo fato de seu grupo todo de contato ter se vacinado, o que fez os vírus e bactérias pararem de circular.
Como não há obrigatoriedade, Branca não cogita receber o imunizante contra a Covid-19. Ao mesmo tempo, ela respeita o calendário de vacinas a serem dadas à filha.
“O pai dela pensa de outra forma. Além disso, criança não vacinada não pode frequentar escola no nosso município”, explica.
A artesã costuma acompanhar o noticiário sobre a produção de vacinas no Brasil e no mundo pela imprensa. Ela também discute o tema com grupos de amigos no WhatsApp em conversas sobre alimentação saudável.
Com base nas informações obtidas, Branca se preocupa em especial com as vacinas que usam tecnologia de RNA mensageiro (mRNA), produzidas pelas farmacêuticas Pfizer/BioNTech e Moderna.
As mesmas que o presidente Bolsonaro afirmou, em dezembro, que poderiam “transformar as pessoas em jacaré”. “As pessoas ficam brincando de Deus. Os laboratórios perdem o controle sobre os vírus e depois desenvolvem vacinas.”
Ela defende que a cura está dentro de cada um e enfatiza as medidas de proteção. “O coronavírus me assusta, mas tem o estilo de vida e a questão da higiene que ajudam a prevenir. Usar máscara, chegar em casa e tomar banho são hábitos fundamentais.”
Aos 67 anos, a técnica de enfermagem aposentada Regina Sartori quer distância das inovações fornecidas na ponta da agulha.
“A partir de agora, não quero mais tomar vacina”, diz ela, que no passado cumpriu boa parte do próprio calendário vacinal e das filhas.
A decisão é fruto de dois fatores: ter manifestado uma gripe forte após ser imunizada contra a doença e começar a se informar sobre vacinação e outros assuntos, principalmente por meio de vídeos no YouTube.
Todos os dias, ela assiste ao CL News, noticiário que traz um panorama enviesado sobre o Brasil e o mundo. Nele, o apresentador frequentemente chama a pandemia do novo coronavírus de “peste chinesa”, a Organização Mundial da Saúde de “Organização da Mentira e da Safadeza” e a mídia de “extrema imprensa militante”.
Além dos vídeos desse e de outros canais, Regina acompanha o noticiário da TV aberta e dos jornais impressos mais tradicionais.
“Mas como vejo muitos vídeos [no YouTube], eu sei quando [a imprensa] está falando mentira ou verdade, porque ela inventa as notícias.”
Regina tem uma visão crítica das vacinas contra a Covid-19. “É um absurdo isso que vou falar, mas é verdade: dizem que ela muda o DNA, deixa os homens estéreis e implanta um chip de rastreamento na gente”, conta, indo contra absolutamente todos os dados científicos já publicados na história e sem nenhuma prova que confirme sua tese. “[A vacinação] é tudo política. É para gerar dinheiro e não para ajudar o povo. Ao contrário”, opina.
Outra que endossa o coro é a dona de casa Eronita Lucas de Paulo, de 77 anos. “Não sei que reação pode dar.” Há 15 anos, ela se vacinou pela primeira vez contra a gripe.
Não teve problema. No ano seguinte, também reagiu bem ao imunizante. Na terceira vez, passou por uma experiência difícil.
“Me senti mal. Ficava sem ar. Se subisse qualquer escadinha, me dava canseira. Canseira e falta de ar. Fiquei de cama.” Os médicos concluíram tratar-se de uma reação alérgica.
“Fiz muitos exames. Não deu nada. Depois, tomei vacina contra alergia por muito tempo. Não posso usar perfume. Nem chego perto de desinfetante. Não posso comer camarão. A médica que me tratou disse para não tomar mais a vacina da gripe, pois mexia com minha alergia. Estou cismada [com a vacina contra a Covid-19]. Tenho medo de que mexa com minha alergia outra vez.”
A resolução foi tomada antes que ela recebesse o resultado positivo do teste para a Covid-19, no começo de dezembro de 2020.
Foi uma surpresa: “Estava no isolamento em casa e não senti nada. Só saía pela manhã, de máscara, para dar uma voltinha com a cachorra. Fazia tudo direitinho. Chegava, tirava o tênis, deixava do lado de fora da casa. Lavava bem as mãos. Não sei como peguei essa porcaria”.
O vírus foi detectado no organismo de Eronita durante uma internação hospitalar após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC).
Liberada ao final de uma semana em um hospital de São Caetano do Sul, onde mora, cumpriu a quarentena dentro de casa. Isolada no próprio quarto, acompanhou pela televisão reportagens sobre a pandemia e o começo da vacinação no Reino Unido.
Não viu nenhuma notícia relacionando a vacina com processos alérgicos. Ainda assim, manteve a posição: “Quem passou pelo que eu passei lógico que fica com medo da vacina”.
Compreender o que leva essas mulheres a não se vacinar é mais complexo do que listar seus argumentos.
“Existe um fenômeno que chamamos de hesitação vacinal, quando a pessoa tem incertezas e dúvidas sobre algumas vacinas, mas aceita tomar outras ou fica com tantos questionamentos que deixa de se imunizar”, define o infectologista Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Pediatria. Pode ser que, com os imunizantes disponíveis (até o fechamento deste texto, temos dois no Brasil, o CoronaVac, da farmacêutica chinesa Sinovac Biotech, e o da AstraZeneca, desenvolvido pela Universidade de Oxford, no Reino Unido), algumas pessoas deixem de lado suas inquietações e se vacinem.
Mesmo assim, a predisposição contrária à imunização e suas consequências são motivo de preocupação.
“A imunidade de rebanho acontece com a vacinação. É essa imunidade que hoje protege as pessoas que não se vacinam. No entanto, se as poucas pessoas que hoje não se vacinam no Brasil se tornarem muitas, isso não vai acontecer e doenças já erradicadas voltarão a circular”, explica a microbiologista Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência. O raciocínio aplica-se à Covid-19. Se pouca gente for vacinada, a doença permanecerá fora de controle.
Na opinião da microbiologista, as vacinas foram transformadas no centro da polarização política que divide o país. “Esse uso político deu margem a um grande número de especulações e teorias de conspiração, o que deixa a população confusa e sem saber em quem acreditar.”
O desapontamento com as autoridades públicas por negligenciarem o combate à pandemia também produz impacto na aceitação das vacinas. O próprio Presidente da República fomenta a dúvida ao declarar que não vai se vacinar e que ninguém é obrigado a se imunizar.
Deputados e até médicos conhecidos apoiam essas ideias. “Com ou sem pandemia, os fatores mais importantes para garantir a vacinação são a confiança nas autoridades, na saúde e na informação. Essas três coisas estão muito abaladas no Brasil”, diz a pediatra Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Para o infectologista Renato Kfouri, o pano de fundo da desmotivação crescente sobre as vacinas é a falta de percepção dos riscos.
“Temos hoje um cenário diferente do que havia no passado, quando as doenças infectocontagiosas eram comuns e havia o temor de sequelas. O valor das vacinas era mais perceptível.”
Nas últimas décadas, o bom desempenho do Programa Nacional de Imunizações (PNI) garantiu o controle e a erradicação de muitas doenças infectocontagiosas. No entanto, a noção de que o problema estava controlado levou muitos pais a não vacinar os filhos.
O perigo estende-se à temida poliomielite. Em 2020, apenas 65% das crianças até 5 anos se vacinaram contra a doença – a recomendação para o controle da doença é de 95%.
“Houve mais de 1.200 casos de pólio nos últimos 12 meses em mais de 22 países. O agente foi o mesmo vírus que pode ser contido pela vacina. A vacina faz milagres, mas a baixa cobertura destrói essa proteção”, pontua a médica Isabella. “Em 32 anos, vi muita criança morrer de sarampo, tétano e difteria. Está faltando memória”, diz ela.
A pouca familiaridade com os temas da ciência faz parte da equação. “De repente você tem a população inteira, não só do Brasil, mas do mundo, acompanhando testes clínicos de vacina como se fossem novela das 8”, observa a microbiologista Natalia.
“É natural que as pessoas fiquem receosas. É tudo muito novo. Quando foi que alguém questionou a tecnologia usada em uma vacina?”, questiona ela. Por um lado, isso difunde a ciência.
“Mas pode ser usado, como de fato foi, para espalhar medo”, diz. “É necessário mostrar à população que efeitos adversos são naturais no processo de elaboração vacinal e precisam ser avaliados caso a caso para assegurar se estão ou não relacionados à vacina. Se falharmos nesse diálogo, aí sim estaremos nutrindo o movimento antivacina, porque ele se alimenta do medo das pessoas”, argumenta a microbiologista.
Ainda nesse campo, o desconhecimento sobre as respostas do organismo humano às vacinas dá margem a mal-entendidos. “Claro que um estilo de vida saudável, com exercícios, boa alimentação e sono regular, fortalece o organismo. Tudo isso ajuda a ter mais resistência, mas não barra a contaminação por agentes infecciosos”, diz Renato. “O sistema imune precisa ser exposto ao vírus ou bactéria ou a uma vacina para produzir anticorpos específicos”, explica o médico.
Tudo isso somado ao tsunami de desinformação nas redes sociais sobre a Covid-19 cria um ambiente favorável à resistência aos imunizantes. Disseminar notícias falsas é uma das principais atividades dos movimentos antivacina que proliferam pelo mundo.
Entre 24 de janeiro e 1º de setembro de 2020, mais de 8,6 mil notícias falsas sobre o coronavírus e a Covid-19 foram detectadas em todo o mundo. O mapeamento foi realizado pelo CoronaVirusFacts Alliance, um projeto vinculado à rede de checadores de informação International Fact-Checking Network (IFCN), que reúne profissionais de 77 países. Nenhuma das entrevistadas participa desses grupos.
O movimento antivacina ganhou força a partir do final dos anos 1990, quando o médico britânico Andrew Wakefield divulgou um estudo relacionando a incidência de autismo em crianças imunizadas pela vacina tríplice viral (contra a caxumba, o sarampo e a rubéola).
O estudo foi publicado em uma revista científica muito respeitada, a The Lancet, mas logo se revelou uma fraude. Andrew foi desmentido e perdeu a licença médica. Passou, no entanto, a servir como referência para grupos que duvidavam da eficácia das vacinas, mesmo sem nenhuma base científica.
No decorrer da pandemia do novo coronavírus, esses grupos, antes fortes apenas na América do Norte e na Europa, se espalharam para todos os cantos.
No Brasil, os argumentos de Andrew são repetidos em publicações de grupos públicos do Facebook, como o “Vacinas: o lado obscuro das vacinas”, com mais de 14 mil membros, e o “Vacinas: o maior crime da história!”, com cerca de 9 mil participantes, além de citações em posts da página Movimento contra Vacina no Brasil.
Nesses locais também circulam outras teorias conspiratórias e sugestões de uso de produtos e tratamentos sem comprovação científica. “Já teve todo tipo de boato sobre a vacina, até que era produzida a partir de fetos humanos”, conta Sérgio Ludtke, editor do Projeto Comprova, que reúne profissionais de 24 veículos de informação, entre eles, dos jornais Folha de S. Paulo e Estadão.
Muitos desses conteúdos estão em inglês ou são traduzidos. “Uma avaliação feita pela Sociedade Brasileira de Imunizações de textos e vídeos oposicionistas às vacinas mostrou que 50% das nossas fake news vinham da Europa e dos Estados Unidos. E 30% de um único grupo norte-americano antivacina”, revela a médica Isabella.
O tamanho das avarias produzidas pela epidemia de informações falsas, a infodemia, foi mensurado por outra pesquisa da SBIm em parceria com a plataforma Avaaz no final de 2019.
“Quase sete em dez brasileiros acreditam em pelo menos uma informação imprecisa sobre as vacinas, como efeitos colaterais graves. Além disso, mais de 21 milhões de brasileiros deixaram de se vacinar ou não imunizaram uma criança sob seus cuidados”, diz Isabella.
Mais uma característica dos antivacinistas é pressionar os legisladores contra a obrigatoriedade da vacinação. No Brasil, esses grupos ainda estão longe do grau de organização e financiamento visto em outros continentes.
“Mas eles estão crescendo barbaramente, e não sabemos onde vão parar”, diz o jornalista Sérgio. Seu alvo preferencial tem sido a vacina CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac Biotech/Instituto Butantan, instituição ligada ao governo paulista.
“É um movimento que merece atenção no Brasil agora, porque infelizmente tem o potencial de fazer um grande estrago de saúde pública num país onde a população sempre foi muito favorável à vacinação e com uma grande adesão às campanhas.
É um momento de alerta para que não se organize como na Europa e nos Estados Unidos, principalmente quanto ao financiamento”, diz Natalia.
Marie Claire tentou entrar em contato com a organização desses grupos e páginas do Facebook e com mais de 30 mulheres que interagem neles. Algumas responderam dizendo que não conversam com jornalistas ou que não se consideram antivacinistas e, portanto, não se sentiam confortáveis em falar sobre o assunto.