Uma estudante de 13 anos que acusou de islamofobia o professor Samuel Paty, decapitado na França em outubro do ano passado, admitiu que contou mentiras sobre o caso e que sequer estava presente no dia em que ele exibiu charges do profeta Maomé a alunos durante uma aula sobre liberdade de expressão.
A admissão ocorreu durante uma audiência em que a adolescente foi acusada de “denúncia difamatória” em novembro, pouco mais de um mês depois que um tchetcheno de 18 anos assassinou o professor, mas só veio à tona em uma reportagem publicada no domingo (7) pela imprensa francesa.
Segundo o jornal Le Parisien, a menina inventou uma história para justificar uma suspensão de dois dias que recebeu na escola por estourar seu limite de faltas. Na versão inicial da estudante, o professor teria pedido a alunos muçulmanos que saíssem da sala antes que ele mostrasse à classe “uma fotografia do profeta nu”.
A jovem contou ao pai ter discutido com o professor devido a essa atitude, o que teria motivado a suspensão, mas, de acordo com depoimentos de outros alunos, o que ocorreu em sala de aula naquele dia foi diferente do relatado.
Paty, que dava aulas de história e geografia, propôs aos alunos uma discussão sobre dilemas e liberdade de expressão.
O tema central do debate naquele momento era “ser ou não ser Charlie”, uma referência à hashtag #JeSuisCharlie usada para expressar apoio ao jornal satírico Charlie Hebdo, alvo de um ataque terrorista em 2015 que matou 12 pessoas.
Segundo testemunhas, o professor informou a seus alunos muçulmanos que algumas das imagens que ele mostraria poderiam ser ofensivas às suas crenças.
Paty teria então pedido que eles fechassem os olhos ou que ficassem à vontade para sair da sala, se assim preferissem. A garota não estava presente.
“Ela não teria ousado confessar ao pai as verdadeiras razões de sua suspensão pouco antes da tragédia, que na verdade estava ligada ao seu mau comportamento”, diz a reportagem do Le Parisien.
O pai da estudante, muçulmano de origem marroquina, ficou indignado ao ouvir a versão contada pela filha e compartilhou dois vídeos no Facebook pedindo a demissão do professor e acusando-o de discriminação.
O homem também registrou queixas na polícia, alegando que Paty era culpado por “difundir uma imagem pornográfica”, o que também levou a acusações de islamofobia contra a escola.
O caso teve repercussão nas redes sociais e chegou ao conhecimento de Abdullakh Anzorov, um imigrante tchetcheno de 18 anos que vivia na Normandia.
Dez dias depois da aula de Paty, Anzorov viajou até Conflans Sainte-Honorine, um subúrbio de Paris, e ofereceu dinheiro a dois adolescentes para que eles identificassem quem era o professor.
Ele então esperou que o professor deixasse a escola, em uma noite de sexta-feira, e decapitou Paty. Anzorov foi morto pela polícia francesa horas depois do ataque, e seu crime foi classificado como ato de terrorismo islâmico.
O caso levou à abertura de investigações contra dezenas de militantes de origem muçulmana e reacendeu discussões sobre a islamofobia na França, gerando inclusive crises diplomáticas para o governo do presidente Emmanuel Macron.
A menina manteve sua versão distorcida até que vários colegas de classe a desmentissem. Segundo os investigadores, ela sofre de um “complexo de inferioridade” e é extremamente devotada ao pai.
Seu advogado, Mbeko Tabula, insistiu durante entrevista ao Le Parisien que o peso da tragédia não deve recair sobre os ombros de uma garota de 13 anos.
“Foi o comportamento excessivo do pai, de fazer e postar um vídeo incriminando o professor, que levou a essa espiral. Minha cliente mentiu, mas mesmo que tivesse falado a verdade a reação de seu pai ainda teria sido desproporcional”, disse.
O pai disse à polícia que foi um “idiota estúpido” e agora responde criminalmente por “cumplicidade em um assassinato terrorista”. Ele e um ativista islâmico que o auxiliou no compartilhamento dos vídeos estão presos preventivamente.
“Nunca pensei que minhas mensagens seriam vistas por terroristas. Eu não queria prejudicar ninguém com essa mensagem”, disse o pai da garota. “É difícil imaginar como chegamos a esse ponto, em que perdemos um professor de história e todos culpam a mim.”
O caso de Samuel Paty teve peso decisivo para a aprovação de uma lei pela Assembleia Nacional francesa no mês passado que, na prática, contém o avanço do islamismo no país –para o governo, uma questão de unidade nacional.
A legislação não destaca alguma religião específica, mas prevê medidas mais duras contra temas que vão dos casamentos forçados e testes de virgindade à apologia de atos violentos na internet e à educação de crianças fora das escolas regulares –algumas famílias muçulmanas matriculam seus filhos em instituições islâmicas consideradas clandestinas.
Além disso, a lei estabelece um controle mais rígido sobre associações religiosas e suas finanças, o que, segundo críticas ao projeto, limita a liberdade de culto na França.
“Trata-se de uma ofensiva secular extremamente forte. É um texto duro, mas necessário para a República”, disse o ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, defendendo a proposta.
Apesar da aprovação com folga –347 votos favoráveis, 151 contrários e 65 abstenções–, a lei desagradou tanto alguns políticos de esquerda quanto os de direita.
Os primeiros consideram o projeto um ataque que estigmatiza ainda mais os muçulmanos que vivem na França, enquanto os mais radicais do segundo grupo, como a ultradireitista Marine Le Pen, o veem como fraco demais.
A legislação ainda precisa ser votada pelo Senado nos próximos meses e representa uma das últimas grandes iniciativas de Macron diante das eleições presidenciais previstas para o próximo ano.
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