O Acre é celeiro de grandes artistas. Isso é indiscutível. A terra de Chico Mendes já exportou personalidades que fizeram e fazem parte do cenário nacional. João Donato é um dos pilares da Música Popular Brasileira (MPB). Gloria Perez é uma das maiores dramaturgas da atualidade, exportando produções para centenas de países. Armando Nogueira, in memoriam, é lembrado até hoje como um dos pilares do telejornal de maior audiência do país, o Jornal Nacional. Fora uma infinidade de personalidades, como Gleici Damasceno, Brendha Haddad e outros, que faturam muito e são reconhecidos lá fora.
Mas, e para quem fica? Quais são os desafios? Será que artistas locais, que estão dentro do Acre colaborando com a agenda local, possuem o mesmo reconhecimento ou comemoram as mesmas conquistas? No Dia do Trabalhador, a reportagem do ContilNet teve acesso a dados preocupantes: cerca de 160 músicos, que contribuem para a cultura local, estão precisando de ajuda, pois estão em situação de risco com o comprometimento das agendas locais em virtude da pandemia causada pela covid-19.
A informação foi divulgada com exclusividade à nossa reportagem pelo presidente da Associação de Músicos e Produtores Culturais Independentes do Acre (Amupac), DJ Black Junior. Ele, que hoje é peça chave da Câmara Técnica de Música no Acre, integrando o Conselho de Cultura do Estado, aceitou falar sobre a realidade dos fazedores de cultura no Acre nesta data que deveria ser comemorativa.
“Para o músico, para o profissional que atua nessa cadeia produtiva, para o fazedor de cultura acreano, não é um dia de festa. É um dia de reflexão. Diariamente, esse setor enfrenta uma série de lutas, que se agravaram com a pandemia”, reflete. E de luta DJ Black entende: em 2018, nesta mesma data, ele protagonizou, através da Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), uma manifestação com uma série de categorias por melhorias.
Centenas de manifestantes lotaram as ruas da capital e as proximidades do Palácio Rio Branco e da Assembleia Legislativa do Acre (Aleac). Nenhum deles imaginaria que, dois anos depois, o mundo pararia por causa de um vírus. E, para algumas categorias, como por exemplo os profissionais da área de eventos, parou literalmente e continua parado – sem quaisquer perspectivas otimistas.
Essa realidade virou uma das maiores preocupações de DJ Black. Por conta disto, ele iniciou um verdadeiro Censo dos músicos e produtores culturais independentes do Acre. Foi exatamente esse Censo, que cadastrou cerca de 1743 profissionais, que trouxe a informação preocupante que é destaque na nossa reportagem.
“Tem muita informação. Para você ter uma ideia, 76,1% dos profissionais cadastrados nesta base sobrevivem exclusivamente da música. São profissionais da área técnica, músicos, produtores independentes e por aí vai. É dentro desse percentual que temos cerca de 160 pessoas precisando da nossa ajuda [da associação, do Estado e da sociedade]”, conta.
Na conversa, ele revela mais dados exclusivos, conta boas notícias e revela mais sobre a realidade do músico acreano. Confira agora:
ContilNet: Esse dado é preocupante: 160 pessoas precisando, diretamente, de ajuda. Essas pessoas estão recebendo algum tipo de suporte? Pode dar mais detalhes sobre isso?
DJ Black: Essa situação de risco é um ponto sério. O que nós temos hoje para o músico? Para você ter uma ideia, tenho cerca de 500 sacolões que montamos para doar para essas pessoas. Tenho reunião com pessoas de supermercados para tentarmos contar com a ajuda da iniciativa privada.
Mas os desafios são muitos. O valor da cesta básica não é nada praticável. A classe média, que até pouco tempo movimentava o país, está desaparecendo. Isso porque, dela, faziam parte pessoas pobres que ascenderam socialmente. Os ricos estão cada vez mais ricos. É um verdadeiro calote.
É por isso que eu estou fazendo um verdadeiro censo do perfil da cadeia musical e cultural no Acre. Como seria esse perfil cultural, demográfico e socioeconômico. Precisamos estar de olho nisso.
Sobre esse Censo, pode dar mais detalhes sobre os dados que vocês já conseguiram colher? Além desse dado, de cerca de 160 pessoas em situação de risco, tem outro dado que você acha tão preocupante quanto?
Então, vamos lá:
Em termos de gênero:
– 91,5% da nossa base são homens;
– 8,5% são mulheres.
Temos também alguns dados sobre escolaridade:
– Estudaram até a quarta série: 53,4%;
– Possuem Ensino Médio: 18,6%;
– Possuem Ensino Superior: 28%.
Confesso que esse dado de 28% desses profissionais com ensino superior foi uma grata surpresa. Por outro lado, é preocupante ter mais da metade dessa categoria com apenas até a quarta série. Tem muita gente analfabeta nesse percentual.
Sobre as jornadas dos profissionais:
– Sobrevivem exclusivamente da música (técnico, músicos): 76,1%;
– Possuem trabalhos extras/jornada dupla: 23,9%.
Em termos gerais, os mais afetados pela pandemia são os que sobrevivem exclusivamente da música. Esses outros que possuem jornada dupla possuem uma fonte alternativa de renda; logo, não foram tão afetados.
Cachê:
Renda mensal: R$ 3 mil, em média, que pode variar para mais ou para menos. Existem pessoas que possuem cachê de, em média, R$ 150 – essas pessoas estão em situação preocupante.
Algumas pessoas venderam moto, carro. Temos também pessoas que possuem veículos mas que foram fazer trabalho como freelancer: entregador, motorista de aplicativo, e outros. Estamos nos virando da forma que podemos.
Essas pessoas estão recebendo apoio da iniciativa pública e privada? Os incentivos, como Lei Aldir Blanc, estão chegando a quem precisa?
Ton, esse é um tema complexo. Eu passaria muito tempo falando sobre a complexidade disso. Na minha percepção, uma coisa é achar que o governo tem que ser o seu pai. Outra coisa é levar para o Estado ideias, soluções, políticas públicas efetivas para melhorias.
Existem os dois lados da moeda. No que tange à Lei Aldir Blanc, por exemplo, eu acho que há pontos de melhoria, de forma a incluir todos que precisam. Mas nós, como artistas, também precisamos reconhecer onde erramos. Infelizmente, na era da tecnologia, da informação, alguns profissionais da música ainda sentem dificuldade de se adequar a isso. E essa é uma realidade nas esferas municipais, estaduais e federais.
Vou citar um exemplo: para um artista fazer live via Prefeitura de Rio Branco, é necessário emissão de certidão negativa. Porém, muita gente tem problemas hoje com pagamentos de dívidas, justamente pela situação difícil. Ou seja, essa pessoa, que precisa, não vai ter acesso a esse recurso.
Na minha percepção, se essa pessoa tiver a possibilidade de quitar isso depois, ter acesso a um percentual em dinheiro, como acontece em outros casos, é possível que esse profissional trabalhe e pague suas dívidas.
Fora a falta de comunicação e informação. Ter DRT [registro que regulamenta a profissão de músico], CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas], é uma realidade hoje. Editais requerem isso. Precisamos lutar, nos reinventarmos, para que tudo isso seja possível e esteja dentro dos conformes.
Sobre ajuda, como um todo, tivemos, sim, ações sociais, como entrega de sacolões via instituições públicas, e outros. Ano passado tivemos apoio nesse e em outros sentidos; esse ano, infelizmente, estamos no aguardo.
Existem muitas previsões sobre a retomada de serviços após a pandemia. E, claro, previsões que dizem respeito à quanto tempo ainda a enfrentaremos. Como você acha que vai ser, para você e sua categoria, essa retomada?
Acredito que daqui 5 anos, por exemplo, ainda sentiremos o impacto disso. Algumas pessoas falam até 10 anos. Prefiro ser mais otimista que isso. Mas, a verdade é que vivemos em um mundo de incertezas. Nosso desafio é se reinventar, temos procurado Estado e municípios para que andemos de mãos dadas .
Falando em parcerias, a Câmara Técnica de Música realizou uma agenda com o presidente da FEM, o Correinha. Como foi? Acha que vai trazer bons frutos?
Eu fiquei muito feliz com essa ação. Como falei anteriormente, é algo inédito. Não é agenda política. É uma agenda de construção. Vai desembocar lá na Lei Aldir Blanc, além de leis locais.
Conversamos sobre muita coisa: impostos para estúdios e lojas que contemplam esse mercado. Incentivos, descontos, manutenção de estúdios, insumos e ferramentas para ajudar essa classe. Falamos em oficinas para construção de instrumentos.
Falamos até das madeiras apreendidas no Acre: muita coisa estraga. Porque essas madeiras não podem virar um braço de violão? Pode nascer, daqui, algo promissor – por exemplo. Mas a indústria deveria ser valorizada. Sem uma logística, não conseguimos ser competitivos.
Qual a sua perspectiva para o futuro? Como você se imagina -e imagina sua categoria – daqui algum tempo?
Crescendo. Evoluindo. Todos de mãos dadas. Sociedade, governo e instituições. Tem muita coisa pra ser feita. Através da Lei Aldir Blanc, podemos mudar a realidade de muita gente. Por exemplo: sabia que podemos ter a oportunidade de trazer profissionais de fora para nos ensinar?
Porque isso não pode acontecer? Porque não podemos quebrar o tabu de que não podemos fazer tudo aqui? Porque precisamos exportar, recorrer a outros estados para serviços pontuais de qualidade?
É por isso que eu digo que, hoje, não temos o que comemorar. São muitos desafios. Mas vamos ter. Vamos seguir.