Morto e enterrado no AC, Solom da Cunha estaria operando milagres

Embora o crime tenha sido registrado no dia 6 de maio daquele ano, foi só 15 dias depois, num 21 de maio de 1916, que a incipiente sociedade acreana iria tomar conhecimento de um fato que abalaria todo o Brasil: a morte de Solom da Cunha, então com 24 anos de idade, delegado de polícia da então Vila Seabra, hoje o município de Tarauacá, no interior do Estado, e cujo corpo continua sepultado à sombra de uma majestosa samaúma de uma colocação do Seringal Miraflores, localizado no território de Feijó. Seringueiros da região, na atualidade, falam de milagres atendidos em orações em intenções de sua alma, à beira do local onde imaginar estar a sepultura.

O delegado, morto a tiros durante a reação de um grupo de seringueiros que ele deveria prender, encerrava em si uma tragédia pessoal: era filho do escritor Euclides da Cunha e da dona de casa Anna de Assis, que protagonizaram, com a participação do cadete do Exército Dilermano Cândido de Assis, naquilo que o Brasil conheceria como “Tragédia da Piedade”, como o caso ficou conhecido, em 1909.
“Piedade” é uma referência ao bairro do Rio de Janeiro, então capital da República, em que os fatos que iriam desencadear toda aqueLa tragédia começaram acontecer. Ali morava Dilermano e seu irmão Dinorar, então um promissor craque de futebol do Botafogo. Anna de Assis, esposa do escritor, também vivia por ali, como amante de Dilermano e com quem iria ter pelo menos dois filhos fora do casamento.

Anna e Dilermano se conheceram quando andava pelo Acre o escritor Euclides da Cunha, já famoso como autor do livro “Os Sertões”, no qual, como repórter do jornal “O Estado de São Paulo”, contara a saga de Antônio Conselheiro e a brutalidade do Exército da recém-fundada República contra um grupo de fanáticos no interior da Bahia. O ano era de 1905, quando Euclides da Cunha por aqui chefiava uma longa expedição de uma comissão mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, parta estabelecer as fronteiras entre os dois países. Enquanto o escritor e engenheiro vivia as agruras da selva tropical, contraindo inclusive as doenças comuns da região na época, entre as quais a malária, sua esposa, então com 33 anos, no Rio de Janeiro, estava apaixonada por Dilermano, o jovem cadete de 17 anos.

De volta ao Rio de Janeiro, em 1909, famoso e com aspirações de vir a ser candidato à presidência da República nas eleições seguintes, Euclides da Cunha encontra sua reputação destroçada: sua esposa não só traíra como estava de bebê de colo e grávida de um segundo filho que o escritor jamais poderia admitir como seus porque, quando s crianças forma geradas, ele viajava pelos grotões da Amazônia. Anna de Assis resolve então deixar o marido e vai juntar-se a Dilermano em sua casa, no bairro da Piedade. Era demais para a estirpe de um homem como Euclides da Cunha e ele vai, como disse, lavar sua honra ainda que com sangue. Vai encontrar a morte.

– Corja de canalhas. Vim aqui para matar ou morrer – disse Euclides da Cunha ao chegar na casa da Pìedade, assim que Dinorah, inocente, abrira a porta. É o primeiro a ser alvejado com um tiro que lhe atingira a coluna e que vai deixar o promissor jogador de futebol paraplégico para o resto da vida – ele acabou se suicidando, anos depois, ao se jogar ao mar. Dilermano está num outro cômodo, desarmado, e mesmo ferido, consegue escapar, acessar suas armas e revidar. Matou o escritor com cinco tiros. Enquanto Euclides da Cunha era um homem das letras, ele era das armas. Levado ao Tribunal do Júri, foi absolvido por legítima defesa.

Em 4 de julho de 1916, Euclides da Cunha Filho, o “Quindinho”, às vésperas de completar 22 anos, repetiu o gesto do pai no intuito de vingá-lo. Numa sala do antigo Fórum do Rio de Janeiro, Euclides Filho atirou em Dilermando que, mesmo ferido, conseguiu matá-lo. Foi absolvido de novo por legítima defesa.

Enquanto nisso, pelas dificuldades de comunicação a época, não é possível saber se Solom da Cunha, irmão mais velho de “Quindinho”, no interior do Acre, tenha sabido, daquela segunda tragédia em sua família. Sua morte foi comunicada no dia 21 de maio de 1916, pelo então escrivão de Polícia de Seabra, Sancho Pinto Ferreira Gomes, ao juiz da comarca, nos seguintes termos: “Com o mais profundo pesar, cumpro o dever de levar ao conhecimento de V. Exª o lamentável incidente em que foi vitimado o nobre e saudoso Delegado Auxiliar de Polícia deste 2º Termo, cidadão Sólon da Cunha, no dia 6 de maio, sábado às 9 horas da noite. Pelo ofício número 24, aquela autoridade comunicou a V. Exª que iria fazer a diligência para abrir inquérito e prender os culpados da tragédia do dia 21 de abril, da qual foram protagonistas João Muniz Correia Lima, sócio da firma Correia Lima & Cia, seu irmão Francisco Muniz Correia Lima, seu aviado e criminoso impune Antonio Sobralino de Albuquerque, seus fregueses João Ribeiro Pedro Paulo Pessoa (vulgo Pedro Coxo), João Ignácio, José Malaquias, Frutuoso de Tal e mais 28 homens armados de rifles e em balados, cujos nomes ignoro, dos seringais Santa Cruz e Sant’Anna; e Possidonio de Oliveira, sócio da firma Cardoso & Oliveira, João Nogueira e o velho João Baptista Lima, José Candido de Oliveira e Manoel Monteiro, do seringal Mira-Flores, tendo sido assassinados os três primeiros deste seringal, e se evadido os dois últimos”.

De acordo com o relato, “dos seringais Santa Cruz e Sant’Ana somente consta ter sido ferido, com uma bala no braço esquerdo, perto do ombro, Francisco Muniz Correia Lima. Partindo dessa Vila, no dia 1º deste, às 6 horas da manhã, chegando ao seringal Mira-Flores do rio Jurupary, propriedade de Cardoso & Oliveira, deste 2º Termo e do 7º distrito de polícia no dia 4 às três horas da tarde, acompanhado pelo cabo e duas praças aqui destacadas; aí foram notificados oito homens deste seringal e partimos no dia seguinte a 1 hora da tarde para o local as gravíssimas ocorrências que já aludi. Pernoitamos numa barraca do seringal Mira-Flores, de onde partimos no dia 5 às 8 horas da manhã passando ainda às 10 horas na barraca de “Carneiro”, e às duas horas da tarde passamos na barraca “Maracujá”, pertencente ao seringal Santa Cruz, propriedade dos senhores Correia Lima e Cia., e aí efetuamos a prisão de Mariano e Bernardino de Tal, fregueses da firma, que nos acompanharam até a barraca do Ambrósio, nas proximidades da qual prendemos ainda Luiz de Almeida, que nos acompanhou também.
Ao chegarmos à referida barraca fez-se um reconhecimento verificando-se que lá encontravam-se quatro indivíduos preparados para resistir a quem chegasse, pois estavam deitados em suas redes com os rifles ao alcance das mãos. O preso Luiz de Almeida fez ver ao delegado que dois daqueles homens entregavam-se resistindo, porém, outros dois, efetivamente assim aconteceu. Dissera ainda Luiz de Almeida, que tendo morto um nambu e indo deixá-la na barraca aos companheiros, momentos antes de ser preso, os encontrou todos quatro rifles em punho e os quaes lhe disseram: Quando você se aproximar da barraca, faça sinal gritando de longe. Depois de estarmos senhores do terreno, o delegado saiu na frente do terreiro, acompanhado pelo cabo, os dois soldados e os notificados, ficando eu e Luiz Barroso guardando os três presos, entrincheirados na boca de uma estrada de seringueira, a cinco metros de distância da dita barraca, indo o delegado um pouco adiante pediu licença subindo as escadas da barraca, e disse: sou delegado de polícia. Os dois atacaram-no de rifles em punho, tendo o criminoso Francisco Leandro disparado seu rifle no delegado e o projétil atingindo-o nas proximidades do umbigo, do lado direito. Apesar de ferido, Sólon desfechou um tiro no peito do assassino prostando-o e deu ordem de fogo no que foi obedecido, caindo em seguida o outro companheiro que de rifle em punho jurava vingar a morte de Francisco Leandro, o qual chamava-se Bernardino de Tal; os outros dois aproveitaram-se da ocasião e evadiram-se em vertiginosa carreira. Tudo isso não demorou mais que dois minutos. Sendo sabedor por Luiz Almeida, freguês de Correia Lima e Cia., que a uma hora de distância se achava em uma barraca o criminoso Antonio Sobralino de Albuquerque, aviado da dita firma acima, com nove homens armados de rifles esperando qualquer aviso, achei prudente regressar dali em continente para obter socorro para o delegado que estava mortalmente ferido, e fiz partir a toda pressa dois dos notificados, Luiz Barros e Alexandre Albuquerque, para buscar medicamentos no barracão Mira-Flores e gente. Já eram 6 horas da tarde, e receava-se um novo ataque, tratando logo da condução de Sólon, em uma rede que se fez, partindo dali às 6 horas da tarde, e assim andamos em busca da barraca “Revolta”, por um varadouro horrível até 9 horas da noite, hora em que o saudoso delegado fez parar o pessoal e perguntou se estava com a fala mudada dizendo estar quase cego, dando em seguida um longo suspiro disse: aí meu pai! Assim faleceu o nobre e distinto brasileiro Sólon da Cunha, no sagrado cumprimento de seus deveres. Prosseguimos com o cadáver até uma hora da madrugada ora por varadouros, ora por estrada de rodagem. Ali esperamos que o dia amanhecesse. Demos-lhe sepultura nas proximidades da barraca de Carneiro de Tal, freguês da firma Cardoso & Oliveira, do seringal acima citado e de lá regressei a esta Vila, conduzindo Luiz Almeida e mais três testemunhas que presenciaram as ocorrências de 21 de abril passado, bem como cinco rifles, que aprendi à uma hora na barraca “Maracujá” e os quatro últimos na barraca dos “Monteiros”, onde se deram as tristes e lamentáveis ocorrências que acabo de expor. Cumpri-me ainda levar ao conhecimento de V. Exª que o brioso e nobre Sólon da Cunha ao sair desta Vila, para a infeliz diligência, despediu-se de todos dizendo ter certeza de morrer, na mesma, ao ponto de ter deixado cartas para sua noiva e seu irmão; apesar disso sempre alegre, delicado, destemido como bravo, colocando sempre o sagrado cumprimento de seus deveres acima de tudo. Com o desaparecimento do morto ilustre perde-se um dos leais e dedicados servidores, e a “Pátria Brasileira” um moço de honestidade reconhecida e de um caráter puro e sem mancha, virtudes estas que rarissimamente se encontram em nosso País, que chora a falta de homens da fibratura de Sólon da Cunha”, disse o escrivão.

Jornais da época relatam que, após o sepultamento, lá mesmo no seringal Miraflores, “como ninguém da família aparecera para abrir inventário, o juiz determinou que fossem avaliados os bens que Solon deixara em três malas constituindo-se de objetos de uso pessoal como um chapéu de massa , um terno de casimira, um cachimbo, etc. Seus pertences foram levados a leilão e arrematados por 178 mil réis, quantia essa recolhida aos cofres do tesouro federal”.

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