‘O que mais me abalou foi ver o material escolar dele’, diz delegado do Caso Henry

O filósofo Friedrich Nietzsche proferiu a seguinte sentença: Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você. Nas últimas semanas, o delegado Antenor Lopes Martins Junior, diretor do do Departamento-Geral de Polícia da Capital da Polícia Civil do Rio de Janeiro, passou, juntamente com sua equipe cara a cara com a escuridão. Neste Papo Reto, ele conta dores e horrores da investigação do assassinato do menino Henry, de 4 anos. Crime pelo qual foram indiciados o padrasto, o vereador e médico Jairo dos Santos (Doutor Jairinho), e a mãe da criança, Monique Medeiros. Antenor revela a delicada caminhada na beirada do precipício, onde juntam-se o humano e o técnico. Entre distanciamento profissional e empatia, a beirada sempre esteve ali. Não poderia ser de outro jeito. É perigoso, porém inevitável, encarar o abismo.

Como tudo começou?

O delegado Henrique Damasceno, titular da Barra da Tijuca, que é um delegado da minha mais absoluta confiança, eu que indiquei pra Barra, ele já trabalhou comigo na delegacia de combate às drogas. Ele me ligou, dizendo que tinha um caso sensível, da morte de uma criança de apenas 4 anos. E o relato apresentado era de acidente doméstico. No entanto, como ele tinha muita experiência com homicídios, ele estava achando o caso estranho. E que estava requerendo uma atenção especial da Polícia Civil. E combinamos de fazer isso. De acionar os médicos legais, foi feita uma perícia no apartamento no mesmo dia. Porque é aquilo. A família está abalada, enlutada, perdeu uma criança de 4 anos. É um caso que por si só já exige da polícia muita sensibilidade, muita cautela. Muita humanidade. Por mais que a gente desconfie, precisa ter muito cuidado, porque a gente está diante de uma família enlutada. E assim foi feito. Foi feita uma perícia preliminar. O corpo foi encaminhado pro IML. A gente fez contato com a equipe de plantão e pediu uma atenção à diretora.

Como todos ficaram quando o laudo mostrou a extensão das lesões do menino?

Quando veio o resultado, isso criou um alerta maior ainda. Porque as lesões eram lesões que numa primeira análise pareciam incompatíveis com o relato que a família estava trazendo, de que o menino havia sofrido um acidente, uma possível queda de uma cama. Dali, com esse laudo, começamos a discutir diariamente o caso. Como a gente iria enfrentar isso. Nem a mãe nem o padrasto, num primeiro momento, foram depor. Quem apresentou o fato na delegacia foi o pai, que não estava no apartamento e por isso não tinha maiores informações. Nós começamos a ter contato diário com as equipes médico-legais e vislumbramos a necessidade de aprofundar a investigação pra entender o que havia levado àquelas lesões. A gente criou uma espécie de grupo de trabalho pra isso. Eu promovi uma delegada, a delegada-adjunta Ana Carolina Medeiros, uma delegada excelente. Eu a nomeei delegada-assistente para, juntamente com o delegado Henrique, conduzir a investigação. Até então ela era delegada plantonista. Por ser mulher, eu entendi que seria bom ter uma autoridade policial feminina, porque envolvia uma mãe. Era um caso todo sensível..

Foi um caso diferente desta vez?

Você começa realmente a ficar impactado com aquilo. Eu tenho 20 anos como delegado de polícia, já fui titular de várias delegacias importantes. Ao longo da nossa carreira, a gente vai se habituando com crimes violentos, mas quando a gente se depara com a morte de uma criança, isso mexe com seu emocional, isso te choca. Ainda mais quando é um fato envolvendo uma mãe. E à medida que fomos aprofundando, fomos verificar como era o comportamento daquela mãe. Se era uma mãe carinhosa, se era uma mãe cuidadosa. E num primeiro momento o que a gente via era que a senhora Monique era uma mãe muito boa, muita dedicada, gentil com o filho. No entanto, a gente foi aprofundando a investigação, os depoimentos foram tomados. A gente foi verificando junto à perícia, fizemos a reprodução simulada. Aí, você começa a olhar o apartamento, as coisinhas dele, os desenhos, a mochilinha dele. Tudo isso impacta. Apesar de você já estar acostumado com a atividade policial, que te deixa habituado a ver coisas muito ruins do ser humano. Você acaba vendo o que o ser humano é capaz de fazer. Os crimes mais violentos são investigados pela Polícia Civil. Você se depara com o lado mais perverso do ser humano, então, dificilmente algo te tira da sua estabilidade. Mas quando envolve uma criança… Nós somos profissionais, mas somos seremos humanos. Isso traz um impacto. O que bastante me impressionou foi isso. O apartamento, as coisinhas da criança, a mochilinha dele. Os desenhinhos. Os vídeos dele. Você via que era uma criança muito encantadora. A maneira dele falar, cantando, dançando, alegre. Isso realmente deixou toda equipe policial com mais determinação de descobrir a verdade sobre o que aconteceu com aquele menino. Porque nós queríamos fazer justiça. Mas com todo cuidado, toda técnica.

E aí a investigação seguiu…

Os dias foram passando, e a gente foi aprofundando nosso trabalho, em reuniões, depoimentos e laudos. Testemunhas, câmeras de segurança, pra ver se o menino chegou bem, se não chegou bem. Ouvindo os médicos do Barra D’Or. Esgotando todos os nossos caminhos profissionais pra gente realmente não ter a menor dúvida que havia acontecido. Era uma angústia de toda a equipe esclarecer a verdade e não permitir que fosse feita uma injustiça. Nós só pedimos a prisão do casal quando tivemos a convicção de que, infelizmente, o menino havia sido assassinado por esse vereador, médico, conhecido como Dr. Jairinho. Mas, muito mais difícil, complexo, do que prender um vereador, uma liderança, é você responsabilizar criminalmente uma mãe que perdeu seu filho de 4 anos. Perder um filho é a maior dor que uma pessoa pode sofrer. Você se coloca na posição de um pai, de uma mãe, isso mexe com o emocional de qualquer um. Por mais que o policial esteja acostumado com a desgraça humana.

O que mais doeu na investigação?

O que mais me chamou a atenção, o que mais me deixou abalado foi quando eu vi o material escolar do menino. Quando eu peguei o lapizinho dele com o nomezinho dele, os caderninhos. Você sai carregando um peso enorme nas costas.

Vocês conseguiam dormir ao longo dessas semanas terríveis?

Todo mundo que trabalhou no caso ficou algumas noites com dificuldade de desligar a mente. Só pensando nisso, pensando, pensando, pensando. Os policiais que estavam trabalhando comigo, os peritos, todos nós ficamos muito ligados nesse caso. Os policiais, os peritos, os médicos… Ao ponto de as pessoas ficarem conversando de madrugada, trocando informação, uma, duas, três, até quatro da manhã. Eu fui na delegacia da Barra várias vezes. Não teve sábado, domingo, feriado, não teve nada. Ninguém teve folga. Ninguém conseguia parar de trabalhar. E a gente teve que tomar muito cuidado, porque não basta pra gente acreditar que aconteceu. Achar que foi assim, achar que foi assado. A gente precisa provar aquilo. Provar tecnicamente. Como o Código de Processo Penal permite, como a Constituição permite. Delegado não acha nada. Delegado prova. Porque amanhã os julgadores vão olhar as provas, para condenar as pessoas ou não. Lembro de, em uma reunião que eu estava coordenando, vários peritos buscando literatura estrangeira para estudar sobre queda. Lembro que um perito, ou perita, médico, ou médica, achou uma literatura mostrando que o menino, pra ter aquelas lesões, teria que ter caído de uma altura de cinco metros. E mesmo assim a chance de uma lesão como aquela no fígado era de 1%. E o apartamento tem dois metros. E a gente foi buscar o histórico do vereador, de outras agressões. A gente foi atrás das provas.

Inclusive no Barra D’Or.

Descobrimos que ele tentou liberar o corpo no Barra D’Or fazendo um pedido… Um executivo recebeu uma ligação do vereador, querendo liberar o corpo sem passar pelo IML. Assim que eu soube disso, recebi pessoalmente esse executivo. E ele me relatou tudo. Ele me contou que não conseguia dormir. Que olhava pros filhos e dizia que precisava contar o que sabia pra polícia. O cara estava assim… Sabe quando o cara quer botar pra fora? Ele estava angustiado. No fim, o cara me abraçou e disse: “Muito obrigado. Agora eu estou aliviado”. Isso foi bem próximo do momento das prisões. Nós só prendemos quando percebemos que eles estavam aliciando testemunhas. Ali foi a gota d´água.

O que faz uma mãe tentar encobrir o assassinato do próprio filho?

A mãe sabia, mas ela tentou administrar. Tentou fazer por menos. Ela estava numa situação da vida dela que ela queria manter o status, a boa vida. Ela estava na situação que ela sonhava. Foi morar na Barra, num belo apartamento. Conseguiu uma nomeação que o salário dela subiu 400%. Tava com um político de prestígio. A vida dela estava financeiramente progredindo de uma maneira muito rápida. Até porque era uma relação rápida, de muito pouco tempo. O padrão de vida dela subiu absurdamente. Então, ela foi tentando… É uma espécie de cegueira deliberada, sabe? O que nos causou perplexidade é mesmo após a morte ela não ter gritado. Ela tinha que berrar. Ter contado. Na verdade, teve esse episódio aqui, aquele episódio ali. Lembra que ela levou o filho no médico porque ele estava mancando? Ela tinha que ter protegido seu filho de 4 anos. Isso é o que cada mãe tem que fazer. Ela tinha que ter tirado o filho daquele apartamento, afastado daquele cara estranho, de comportamento anormal. Ninguém está responsabilizando ela à toa. Mesmo depois da morte do menino, ela continuou com o cara, sustentou a versão mentirosa dele, participou dessa farsa de acidente doméstico. Ela foi presa dormindo no mesmo quarto que ele, cara! O que não falta são provas. A Monique falou seis horas na delegacia, teve todas as oportunidades, e não quis contar nada.

Qual é a sensação ao fim de uma investigação como essa?

Nossa sensação é de dever cumprido. Nós entregamos pra sociedade o resultado do nosso trabalho. Provamos que o menino foi assassinado. Eu nunca tinha visto um engajamento tão espontâneo como o da equipe nesse caso. Nas reuniões, eu olhava pros médicos-legistas, que estão acostumados com a morte, fazem autópsia todo dia, com gana de querer resolver. Os investigadores, os delegados. Você não precisava mandar. As pessoas estavam ali de corpo e alma. Todos ficaram sem dormir pensando nisso. Pra gente trazer a verdade, pra fazer justiça, para que agora a Justiça dê a palavra final.

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