A pandemia do coronavírus, instalada no país desde março de 2020, não trouxe apenas o risco da infecção que caminha para a morte de 540 mil brasileiros em mais de um ano de convivência com a doença. Além da doença em si, o coronavírus trouxe consigo também uma série de outros males: desemprego, instabilidade financeira, obrigatoriedade das famílias passarem mais tempo juntas, em casa e, com isso, o aumento de casos de violência contra a mulher, inclusive com o registro de mortes, o chamado crime de feminicídio.
É neste sentido que a pandemias também trouxe um problema tão grave quanto o próprio vírus: a violência contra a mulher, por questões de gênero. No Acre, estado com o maior índice de registros de violência contra a mulher e de feminicídio, chegaram a sete mortes por cada grupo de 100 mil, o que é considerado muito acima da média nacional. Em sete meses de 2021, por exemplo, foram lavrados 540 procedimentos de casos envolvendo crimes contra mulheres. O total de casos (540) comparados com o total de dias dos setes meses, 210 dias, informa um total de ocorrências de mais de três casos por dia.
É o que mostram números de uma pesquisa realizada pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), uma empresa privada brasileira de pesquisas de mercado, opinião e política, com sede em São Paulo, fundada em fevereiro de 2021 por executivos oriundos do antigo Ibope logo após o encerramento das atividades deste Instituto. Dentre seus sócios-fundadores está Carlos Augusto Montenegro, antigo presidente do Ibope, e, além de uma primeira pesquisa na área política sobre a eleição presidencial brasileira de 2022, o Ipec pesquisou a violência contra a mulher no país, principalmente após a pandemia.
Os números são horrorosos e revelaram que 15% das brasileiras com 16 anos ou mais relataram ter experimentado algum tipo de violência psicológica, física ou sexual perpetrada por parentes ou companheiro/ex-companheiro íntimo durante a pandemia. Isso equivale a 13,4 milhões de brasileiras. Significa dizer, com base nos números, que, a cada minuto do último ano, 25 mulheres foram ofendidas, agredidas física e/ou sexualmente ou ameaçadas no Brasil.
O Acre, diminuto em uma população estimada em 1 milhão de pessoas, participa dos números, só com levantamentos de procedimentos instaurados na Delegacia Especializada em Apoio à Mulher (Deam), mostram que, em menos de sete meses do ano de 2021, foram registrados 540 ocorrências de casos de violência contra a mulher. Isso, sem levar em conta que, em 2020, o Acre foi mais uma vez o estado mais violento para o público feminino. Os números fizeram com que a taxa de homicídios dolosos de mulheres do Acre seja a maior do país, com sete mortes a cada 100 mil mulheres. Em todo o país, em 2020, início da pandemia, houve uma leve redução de crimes contra mulheres em relação ao ano de 2018, que registrou taxas recordes. Mesmo assim, os últimos números aferidos ainda são assustadores: 230.160 mulheres brasileiras denunciaram um caso de violência doméstica em 26 unidades da federação, sendo o Ceará o único estado que não informa os números.
Para chegar a este número, o Ipec entrevistou 2002 pessoas no período de 19 a 23 de fevereiro, que responderam perguntas sobre saúde, alimentação, emprego, atividades domésticas e violência no período da pandemia. Além dos elevados números de violência, a pesquisa mostra ainda que a pandemia alterou mais a rotina das mulheres comparativamente à dos homens, e que elas tiveram sua saúde mental mais impactada.
O levantamento mostra que 6% das mulheres brasileiras relataram ter sofrido agressão física por parte de seu namorado, companheiro ou ex, o que equivale a 5,3 milhões de mulheres de 16 anos ou mais. Essa vulnerabilidade se torna ainda mais acentuada quando verificamos que o percentual é maior entre mulheres de 35 a 44 anos (8%), pretas e pardas (7%) e com ensino fundamental (11%). Os números são compatíveis com o perfil das vítimas de feminicídio no país, que atinge majoritariamente mulheres entre 30 e 44 anos (41,4% das vítimas) e com baixa escolaridade, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os números de assédio, por sua vez, são igualmente preocupantes. Cerca de 3% das mulheres brasileiras relatou ter vivenciado assédio sexual por parte de parente, companheiro ou ex-companheiro, percentual que chega a 5% entre as mulheres de 16 a 24 anos.
Ameaças também foram uma constante na vida de muitas mulheres durante a pandemia. A pesquisa Ipec indicou que 3% das entrevistadas foram ameaçadas com arma de fogo ou faca, indicando um agravamento da violência física que pode, em muitos casos, se desdobrar em feminicídio. Esse dado se torna especialmente preocupante com o atual desmonte da legislação de controle de armas, em que o agressor poderá fabricar munição em casa e adquirir até seis armas.
A pesquisa Ipec mostra que 33% das entrevistadas passaram a ter alterações no sono no último ano, 29% começaram a sofrer sinais ou sintomas de ansiedade e 30% disseram ter mudanças repentinas de humor e/ou irritabilidade. Além dessas alterações, 13% relataram aumento do consumo de álcool, e 19%, no uso de medicamentos. Entre as mulheres, quase 65% concordam totalmente ou em parte que se sentem sobrecarregadas com as tarefas do dia a dia.
Esses dados se somam a uma inserção cada vez mais precária da mulher no mercado de trabalho, comprometendo sua autonomia econômica e colocando-as em situação de ainda maior vulnerabilidade. Reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que o percentual de mulheres brasileiras que trabalhavam ou buscavam trabalho no segundo trimestre de 2020 caiu ao mesmo nível dos anos 1980 (45,8%). Com a paralisação de escolas e creches, e pressionadas pelas demandas domésticas e a crise econômica, as dificuldades para se manter no mercado de trabalho se multiplicaram. Retrocedemos três décadas, o que não foi igualmente verificado entre os homens. Na pesquisa divulgada pelo IPEC, quase 30% das mulheres concorda totalmente ou em parte que, durante a pandemia, precisou abrir mão do trabalho para cuidar da casa e da família. A desigualdade de gênero impera no país em que o presidente da República se refere à filha mulher como “uma fraquejada”.
Esse caldeirão mistura a tensão inerente ao momento de crise sanitária, o aprofundamento das desigualdades e o agravamento da violência em suas múltiplas formas. Demanda, por isso mesmo, o fortalecimento de ações de acesso à justiça e acolhimento das mulheres em situação de violência, sem renunciar ao necessário esforço em prevenção, o que só é possível com investimento em recursos humanos e financeiros.
É preciso reconhecer que, ao longo desse um ano de pandemia, algumas medidas importantes foram tomadas para fortalecer a atenção às mulheres vítimas de violência. A Lei 14.022/20, sancionada em julho de 2020, regulamenta o registro de boletins de ocorrência online e por telefone de violência doméstica e intrafamiliar. Além disso, buscou priorizar os atendimentos às vítimas, tornando-os mais ágeis, e definiu a prorrogação automática das medidas protetivas de urgência já existentes enquanto houver estado de emergência em território nacional.
A pesquisa do Ipec reforça o retrato das desigualdades de gênero no país. A pandemia e a necessidade de isolamento social têm se mostrado fatores agravantes de um cenário que já era trágico. As desigualdades se aprofundam no mercado de trabalho, no acesso à saúde e no âmbito doméstico. A violência contra mulheres é, ao mesmo tempo, uma das consequências de uma estrutura patriarcal, mas também um de seus pilares fundamentais, num ciclo perverso que se retroalimenta.