Os moradores de regiões atingidas pelo fogo usado para ceifar a floresta amazônica estiveram mais expostos ao risco de agravamento da Covid-19 em 2020.
Essa sinergia tóxica entre queimadas e infecção pelo novo coronavírus é objeto de uma análise inédita realizada durante cinco meses por uma equipe multidisciplinar de jornalistas, geógrafos e estatísticos do InfoAmazonia, em parceria com pesquisadores do LabGama, ligado à Universidade Federal do Acre, e da Fiocruz.
No ano passado, durante o ápice da temporada de queimadas, respirar principalmente em municípios dos estados de Rondônia, Mato Grosso, Acre e Amazonas ficou mais perigoso por causa de dois inimigos invisíveis aos olhos humanos: o vírus pandêmico e o material particulado fino, poluente microscópico que afeta os pulmões.
Os dados revelam como a poluição decorrente das queimadas amazônicas tem um efeito crônico perverso sobre a população que é explicada por uma específica geografia do fogo. Os municípios mais afetados, em diferentes estados, indicam a expansão do arco do desmatamento.
Todos os anos, a população da Amazônia vê a paisagem mudar por causa da grande quantidade de fumaça que circula na época das queimadas —de julho a outubro, com pico entre agosto e setembro. Junto da fumaça visível nos céus dos municípios, fragmentos muito finos, com menos de 2.5 µm de diâmetro, muito menores do que a espessura de um fio de cabelo, também vão ter efeitos deletérios sobre a saúde de todos. Essas pequenas partículas imperceptíveis a olho nu podem ser detectadas pelos sistemas ópticos dos satélites desde o espaço.
A cada dia em que os finíssimos grãos de material particulado ficaram em suspensão na atmosfera acima do patamar considerado seguro pela OMS (Organização Mundial de Saúde), o risco de uma pessoa contaminada pelo novo coronavírus ser internada subia 2%.
A fumaça das queimadas esteve relacionada a um aumento de 18% nos casos graves de Covid (aqueles em que houve internações hospitalares) e de 24% em internações por síndromes respiratórias nos cinco estados com mais fogo da Amazônia durante as queimadas de 2020 (Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Pará).
Os moradores de Rondônia foram os que mais sofreram. Durante toda a temporada de queimadas, o estado teve o maior aumento de internações relacionadas à fumaça das queimadas. Em setembro, pior mês do ano, os dados mostram quase 26 dias com altos índices de poluição. Nesse contexto, a população viveu com 66% mais de chances de dar entrada no hospital por complicações da Covid-19, indica o estudo exclusivo do InfoAmazonia.
No mesmo período, o ar das cidades do Acre ficou, em média, quase 22 dias do mês saturado de material particulado, o que aumentou as chances de internação em todo o estado em 54%. Os moradores de Poconé e Cáceres, por exemplo, municípios de Mato Grosso onde a situação esteve mais grave em setembro, viveram com 82% mais de chances de dar entrada no hospital por complicações da Covid-19 e 115% considerando todas as síndromes respiratórias naquele mês. Nesse mesmo intervalo temporal, o ar das duas localidades ficou todos os 30 dias do mês saturado de material particulado.
APAGÃO DE DADOS
Para chegar ao enredo que quantificou a relação entre fogo, poluição e agravamento da Covid-19, a equipe multidisciplinar precisou superar um importante obstáculo: nenhuma cidade amazônica possui estações fixas de monitoramento. A poluição da região foi então calculada com base em informações de satélite. Até 2019, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) processava e disponibilizava esses dados para todos os municípios brasileiros, mas o instituto federal interrompeu a divulgação ano passado.
As estimativas globais de concentração do material particulado fino (PM 2.5) são frutos de um modelo espacial, que processa informações registradas por satélites e estações meteorológicas. O sistema é disponibilizado pelo serviço de monitoramento da atmosfera Copernicus (CAMS), do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas (ECMWF).
Para calcular o agravamento dos casos de Covid-19, a análise considerou apenas os casos em que houve internação hospitalar. Os dados, que vêm da base por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) disponibilizada pelo DataSus, são gerados a partir dos formulários de internações hospitalares por síndromes respiratórias, inclusive as que terminam em morte, e são classificadas de acordo com a causa da infecção (Covid-19 é uma das diversas causas de doenças respiratórias apontadas nesses formulários). Como a subnotificação dos casos de Covid-19 é alta, o total de casos de SRAG também foi analisado e indica que os números de Covid podem ser ainda maiores do que os casos oficialmente confirmados (43% das internações tinham causas indefinidas).
Após o processamento dos dados, uma das primeiras constatações foi perceber que nem sempre os locais da Amazônia com mais focos de calor, segundo o registro dos satélites, são aqueles em que a poluição do ar é pior. Chuva, relevo e padrões de vento influenciam isso. Como a região é muito grande, a circulação de massas de ar acaba empurrando o material particulado para longe do local onde ele é lançado na atmosfera pelo fogo.
O modelo matemático construído especialmente para a análise testou diversos cenários e achou significância principalmente entre os níveis cumulativos da poluição (dias do mês em que a concentração média do material particulado permaneceu acima dos 25 microgramas por metro cúbico diários recomendados pela OMS) e os números oficiais das internações tanto por SRAGs quanto por Covid-19. Para verificar o impacto da exposição local à fumaça, o algoritmo recebeu informações dos municípios de moradia dos pacientes e não do local da internação. Na Amazônia, a rede de hospitais de alta complexidade é pequena e muitas vezes distante das pequenas e médias cidades. Por isso, usar a informação do local de internação no modelo, em vez da cidade de origem, levaria a conclusões equivocadas.
“O material particulado, principalmente, causa efeitos crônicos sobre o corpo humano”, afirma Nelson Gouveia, médico e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. De acordo com o especialista em investigar as consequências da poluição sobre a saúde humana, o impacto dos microscópicos grãos de poluição é sistêmico.
Ao serem inaladas, as partículas menores vão chegar até o pulmão, e, as menores ainda chegarão por meio dos alvéolos à corrente sanguínea. “O impacto bioquímico causado pelo material particulado, os cientistas já sabem, contribui para o processo de aterosclerose e, como consequência, geram doenças isquêmicas do coração, além de atingir outras funções do organismo. “A poluição também tem efeitos carcinogênicos, o que aumenta as chances do desenvolvimento de câncer”, diz Gouveia.
De acordo com o especialista da USP, a poluição também pode contribuir para o estabelecimento do diabetes, levar a um déficit cognitivo e a demência por atuar no sistema nervoso e, ainda, a um envelhecimento mais rápido pela ação que ela tem sobre a pele. Nos pulmões, além dos efeitos a longo prazo, o material particulado também tende a gerar reações quase imediatas. Sistema respiratório vulnerável, mostram os dados clínicos e epidemiológicos mais recentes, é o cenário ideal para o novo coronavírus atuar com mais gravidade.
Apesar de as queimadas serem um processo histórico da agricultura da Amazônia, elas passam a ser um grave problema ambiental quando ganham grandes proporções e ainda se encontram com a crise climática, e portanto com períodos mais secos e mais longos.
Mas existe uma diferença grande, afirma o ecólogo Irving Foster Brown, ligado à Universidade Federal do Acre e ao Woodwell Climate Research Center (EUA), há décadas radicado no Brasil, entre o fogo usado por comunidades tradicionais para limpar entre 3 e 4 hectares por ano em um território de 100 mil hectares e os outros, de grandes proporções, registrados no Acre e em outros estados da região. “Tudo é uma questão de escala. Na situação atual, a perturbação é significativa e vai afetar a biodiversidade e o clima”, argumenta Brown.
Para o ecólogo, as queimadas já alteram o clima regional na Amazônia. “As temperaturas nas últimas quatro décadas têm aumentado. No sul da região, o período de seca também está mais prolongado.” A tendência, explica Brown, é a floresta dar espaço para degradação contínua, em um ambiente cada vez mais seco, o que deve ser turbinado pelas mudanças climáticas globais, que tendem a deixar o clima mais quente nos trópicos.