Ter filhos, qualquer que seja a quantidade, é passar a ter o coração fora do corpo, pontifica o escritor norte-americano Neil Postman, segundo o qual o nascimento de uma criança é uma manifestação cabal de que Deus não perdeu, ainda, a crença na humanidade. Nascido em Xapuri, o contador aposentado Manoel Divino Pereira de Moura, que trabalhou por toda a vida como contabilista geral da Secretaria de Estado da Fazenda, pai de 12 filhos, talvez não conhecesse o escritor norte-americano tampouco os seus conceitos, mas sabia dos medos que é ter o coração fora do corpo e andando por ilhas de distâncias no estrangeiro, em países sobre os quais ele apenas ouvira falar.
No dia 11 de setembro de 2001, quando assistia TV, naquela fatídica manhã do maior atentado terrorista da história humana e o maior já registrado em solo dos Estados Unidos, seu Manoel Divino Pereira de Moura sofreu um ataque cardíaco fulminante e morreu, em Rio Branco.
As cenas de aviões derrubando os prédios conhecidas como Torres Gêmeas, embora estivessem sendo registradas muito longe daqui, do outro lado do mundo, eram muito fortes para um homem como ele e que, na sua idade, tinha uma parte do coração fora do corpo porque sabia que, aquela altura, um de seus filhos, um daqueles dos chamados do meio, entre o mais velhos, atualmente com 53 anos de idade, na época, ainda jovem, vivia andando pelo mundo. Para seu Manuel Divino, aquele filho que dera para, desde muito cedo, andar mundo afora, pelo estrangeiro, Dinildomar das Chagas de Moura, de apelido Díni, poderia estar entre as 2 996 mortes, incluindo os 19 sequestradores e as 2 977 vítimas. Não estava, felizmente.
“Eu estava no Peru, vindo para o Acre. Queria fazer uma surpresa e, na hora do ataque às Torres Gemes, eu estava em Inapari, na fronteira com Assis Brasil, no Acre”, disse Dinildomar das Chagas de Moura, em entrevista exclusiva ao ContilNet.
Seu Manuel morreria sem saber disso: seu coração bateu pela última vez em que o segundo avião choca-se na segunda Torre e produz aquelas imagens de violência capazes de chocar até corações de pessoas sadias, imagine de um homem que sabia ter uma parte do órgão vital fora do corpo, levado pelos passos daquele filho que decidira, há tempos, pisar o solo estrangeiro.
Dinildomar das Chagas de Moura, no entanto, não vive no estrangeiro por acaso. Ele mora atualmente em Instambul, na Turquia, depois de percorrer toda a América Latina, parte da Europa, China, no continente asiático, e ter parado na Turquia, onde casou, constituiu família e vive como um perfeito cidadão local, com direito inclusive à identidade. Ali, ele vive como artista plástico, uma arte que aprendeu em Rio Branco, no Acre, e que levou mundo afora. Isso o levou a espalhar seus quadros desde a China, pela África e atualmente ser festejado, inclusive recebendo prêmios os mais diversos em todos os salões da Europa e do Oriente.
O interessante é disso é que seus quadros, sempre muito coloridos, embora sofram as influências culturais por onde o artista tem passado, guardam traços da cultura amazônica, das paisagens naturais e humanas do Acre.
Dinildomar saiu do Acre em 1993, para estudar na Universidade de Bellas Artes Diego Quispe, em Cuzco, no Peru. Era funcionário da Prefeitura de Rio Branco, no setor de desenho e topografia da Secretaria Municipal de Obras de Rio Branco quando foi demitido pelo então prefeito Mauri Sérgio. “Com aquela demissão, decidi que iria ganhar a vida como artista e entrei de cabeça no curso em Cuzco. Hoje, até agradeço ao ex-prefeito por aquela demissão”, contou.
No entanto, Dinildomar já nasceu artista. Desenhava desde criança, em cadernos escolares, com lápis de cor. “Eu desenhava gibis do Homem Aranha, Shangi-Shi, o mestre do kung-fu e alguns personagens meus, que criei na época”, revelou.
Um dia, tais desenhos foram vistos ocasionalmente por um mestre da área, o artista Péricles Silva, que viveu no Acre e que na época dava um curso de desenho para crianças no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Acre (Ufac), no prédio da Ufac-Centro, em Rio Branco. Ao que tudo indica, o professor gostou do que viu e passou a auxiliar o menino cujos desenhos já apontavam para belos quadros no futuro.
O primeiro trabalho profissional ganhou destaque na capa da Listel, a lista de telefone da extinta Teleacre, a partir de um concurso regional promovido pela empresa. Era o desenho de um tucano estilizado que ilustrou a capa da lista por todo o ano de 1994. “Este foi o mais importante: trabalho que eu fiz porque me deu vários prêmios e uma bolsa de estudos para o exterior”, disse.
Ali começaria uma carreira de sucesso ao redor do mundo. O próprio artista define sua técnica como uma produção pictórica elaborada através de uma investigação detalhada do grafismo simbólico das várias tribos indígenas amazônicas e andinas. “Saio da simplicidade dos adornos corporais e das vestimentas particulares de cada aldeia como elementos simbólicos culturais. Vestindo e revestindo diretamente as obras, em cada detalhe pictórico”, define. “Essa percepção visual transpõe através da linguagem não-verbal e tem como alvo divulgar parte das experiências cotidianas, a ingenuidade e a coragem da criança mateira, das comunidades nativas das regiões onde vivi ou passei”, acrescentou.
Vivendo na Turquia há dez anos, como um artista-operário que sai de casa todos os dias, sem feriados ou dias santos, para o ateliê em que trabalha, ganhando uma renda estimada em R$ 5 mil no Brasil, Dinildomar é casado e tem uma filha de quatro anos. Diz que sente muita saudade da família acreana, dos amigos e da comida regional, mas acha que não vai voltar a viver no país, tampouco no Acre, porque, por aqui, segundo ele, para quem vive de arte o campo é limitado. “No exterior, estou sempre participando de exposições, de concursos e coisas assim. No Brasil, viver para e de arte é um sacrifício”, disse.
O artista mata a saudade da terrinha, como ele carinhosamente se refere ao Acre, retratando paisagens, da natureza, animais e seres humanas de cujas memórias, por onde ele andar, levará sempre na alma e vai espalhando o que sente cm seus traços coloridos e únicos. “A gente sai do Acre, mas o Acre não sai da gente”, diz.
Veja algumas obras do artista: