‘Cresci na roça, tive 11 filhos e me formei em pedagogia aos 76 anos’

“Na minha idade, quando a gente pensa em cursar um nível superior é porque está com desejo de adquirir novos conhecimentos, aprender mais e conhecer novas pessoas. Tenho uma experiência de vida que me permitiu entrar nessa aventura, mesmo a essa altura do campeonato. Criei bem todos os meus 11 filhos, tenho uma vida ótima, mas ainda faltava esse prazer. Hoje posso dizer: terminei a faculdade e sou pedagoga formada aos 76 anos.

Para entender a importância dessa minha vitória, é preciso voltar no tempo. Passei a infância na roça do distrito de Ribeira do Amparo, que faz divisa com Cipó, no interior da Bahia. Nossa participação na escola não era assídua, seja porque nossos pais nos colocavam para trabalhar cedo demais ou pela falta de acesso dos professores à área rural. Por dependerem de transporte, numa região em que as pessoas andavam no lombo dos animais, os professores passavam dois ou três dias sem dar aulas.

Infância na roça

Antigamente havia muita dificuldade para estudar, principalmente para quem estava na roça. Meus pais me matricularam na escola, mas só depois dos 7 anos. Isso era uma prática comum entre os moradores das redondezas. A maioria precisava da roça para viver e isso mobilizava famílias inteiras.

E ainda havia a dificuldade dos professores para chegarem até a gente —alguns iam andando para a escola—, e terminou que não demos continuidade à vida escolar.

Meu pai era senhor de casa de farinha e, nos dias em que tinha trabalho, a gente não pisava na escola. Apesar disso, minha infância foi ótima. Brinquei muito na rua, não tinha essas coisas de hoje de videogame e celular. A gente brincava com as crianças mesmo.

Era uma época boa demais. Brincava de casinha, de boneca, divertimento não faltava. Tomava banho de rua. Meu pai plantava arroz e botava a gente para vigiar os passarinhos para que não comessem o arroz. Era tudo um grande divertimento.

Maria Clara de Santana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria Clara de Santana em sua formatura

Imagem: Arquivo pessoal

Meu pai era meio carrasco e não deixava a gente sair para a cidade. Só fui para uma festa depois dos 15 anos. Nessa idade, comecei a namorar, mas escondido. Porque se ele soubesse, bateria em mim. E mesmo nessa época, a gente ainda tinha que trabalhar.

Com 21 anos, me casei com um viúvo. Depois da minha primeira gestação, todo ano eu tinha um filho. O tempo foi passando, meu esposo era muito bom para mim e nessa brincadeira cheguei a 11 filhos.

De volta à escola, junto com o filho

Vivendo em Cipó com a família, cuidei muito bem dos meus filhos. Coloquei na escola, eles estudaram e foram para a faculdade. E assim o tempo passou. Apenas um filho meu não quis estudar. Queria desistir, mas não deixei. Eu o apoiei de uma maneira que trouxe uma felicidade extra: uma amiga veio me avisar que iriam começar aulas para jovens e adultos à noite.

Para incentivar meu filho, me inscrevi com ele e fomos estudar juntos. Foi quando me formei no curso primário.

Quando terminou houve uma festa e as professoras me convidaram para ir além. Eu não quis parar por ali. No outro dia, fui e matriculei meu filho e a mim também. Gostei e dei continuidade até me formar no ginásio. Fiz meu estágio e me formei no magistério. Depois, procurei o prefeito e ele me deu uma sala de aula para os pequenos. Ainda ensinei por sete anos.

Maria Clara de Santana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria Clara de Santana

Imagem: Arquivo pessoal

‘Duvidaram de que eu conseguiria me formar’

Chegou uma faculdade na cidade e tive um convite para ingressar. Aceitei. Fiz minha matrícula e continuei estudando. Muita gente duvidou de que eu conseguiria concluir, mas sempre acreditei em mim e só sosseguei quando me formei.

Tinha amiga que chegava para mim e perguntava se eu não tinha o que fazer. Porque para ela, a gente já estava velha e não tinha nada que procurar fazer faculdade.

O curso foi ótimo. Não perdi uma aula. Foi uma grande experiência. Tive dificuldade na digitação no computador e outras coisas, mas fui atrás para aprender.

Meu desejo agora é trabalhar na área. E ainda pretendo continuar a estudar porque o conhecimento é infinito. A gente não pode parar de estudar. Sempre há algo a aprender, algo para se atualizar, seja por curiosidade ou por necessidade profissional.

Durante minha cerimônia de formatura, o prefeito me ofereceu uma vaga no ensino infantil. Vou trabalhar em uma escola municipal a partir de 2022. Olha que legal! É meu sonho ganhando forma. E eu agradeço a Deus ter me dado força e ter me dado filhos que nunca deixaram de me incentivar.

Espero poder inspirar outras senhoras. Espero que percebam que a idade não é empecilho para realizarem o que quiserem fazer. Que todos façam o que eu fiz.

Nunca é tarde para quem quer aprender. Esse é o exemplo que eu deixo, que sempre é tempo para ser feliz.”

Maria Clara de Santana, de Cipó (BA), é mãe de 11 filhos e se formou em pedagogia aos 76 anos.

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‘Cresci na roça, tive 11 filhos e me formei em pedagogia aos 76 anos’