Um estudo identificou um dado chocante: desde que entrou em vigor, em março de 2016, a obrigatoriedade do exame toxicológico para condutores habilitados nas categorias C, D e E (caminhão, ônibus e carretas) provocou uma redução de 3,6 milhões de motoristas profissionais no mercado.
No entanto, outra conclusão é ainda mais alarmante: na contramão da redução de motoristas, o fluxo de veículos pesados vem crescendo nas estradas pedagiadas, com alta de 9,4% apenas no último ano, segundo dados da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias.
De acordo com o apurado pelo SOS Estradas, o número de CNHs nas categorias C, D e E apresentava desde 2011 um histórico de crescimento médio de pelo menos 2,8% ao ano, totalizando 13.156.723 de motoristas habilitados em 2015.
A partir de março de 2016, pela primeira vez no Brasil, a curva mudou e começou a diminuir justamente quando teve início a exigência do exame toxicológico. Em julho de 2021, foram registrados 11.427.608 habilitados. Considerando a redução e a ausência do crescimento esperado, estima-se que temos, oficialmente, menos 3,6 milhões de motoristas profissionais habilitados no mercado hoje em dia.
A conclusão de especialistas é que a maior parte desses mais de 3 milhões de profissionais tenha deixado de realizar o exame por ter certeza de que iria dar positivo, já que ele detecta se o motorista fez uso regular de drogas nos últimos 90 dias. A grande preocupação de Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, é que muitos deles não deixaram as estradas ao perder a CNH.
“Eles trabalham para empresas que não fazem questão da habilitação ou transportes clandestinos. O que já diz muito sobre as condições de trabalho estão tendo.”
Rizzotto explica que, analisando diversos acidentes envolvendo veículos pesados, como caminhões, carretas e ônibus, fica evidente o uso de entorpecentes por parte do motorista que causou a situação.
“Mas não adianta apenas crucificar o caminhoneiro, há uma responsabilidade enorme por parte dos donos das cargas e das transportadoras que exploram essa mão de obra. O uso de drogas ocorre para sobreviver, não é recreativo, é para sustentar a jornada. Quando uma empresa estipula esses prazos apertadíssimos, já sabe que o trabalhador vai rodar sem cumprir o horário de descanso”, afirma Rizzotto.
“O sistema te vicia, depois te descarta”, diz procurador
O procurador do trabalho Paulo Douglas de Moraes, de Mato Grosso do Sul, acompanha a situação desde 2007. Durante a sua gestão, promoveu exames toxicológicos de urina em caminhoneiros algumas vezes.
Na primeira, em 2007, concluiu-se que cerca de 20% dos profissionais checados usavam cocaína. O índice caiu para 12% em 2012, subiu para 34% em 2015 e caiu novamente para 19% em 2019, após a exigência do exame para manter a CNH. Mas também fica evidente que muitos ainda seguem utilizando entorpecentes.
“Os números são chocantes, mas percebemos que o caminhoneiro é duplamente injustiçado. Ao mesmo tempo em que tem que usar drogas para aguentar a jornada de trabalho, fica mal visto perante a sociedade. Com fama de viciado. Estamos falando de uma carga de trabalho desumana, com condições precárias para atender as imposições patronais de transportadoras e embarcadoras às custas do motorista”, relata o procurador.
“Se não usar, a carga apodrece”, diz caminhoneira
Para entender a situação pela ótica do trabalhador, UOL Carros conversou com dois caminhoneiros. Um deles, uma mulher, preferiu não se identificar, mas afirma que convive com diversos colegas que fazem o uso diário de drogas para conseguir entregar as chamadas “cargas de horário”, nome dado aos carregamentos de alimentos perecíveis.
“Eu levo apenas fruta no meu caminhão, tenho horário apertado e se atrasar sou punida. Mas como sou jovem e uso caminhão frigorífico, minha situação é um pouco melhor. Tenho um pouco mais de tranquilidade, mas mesmo assim não consigo dormir. Já fiquei acordada quase dois dias seguidos dirigindo. Por enquanto aguento sem drogas, quando não aguentar mais, vou deixar a profissão, mas essa não é a realidade dos meus colegas. Eles começam pelo rebite, depois passam para a cocaína. A CNH só Deus sabe como está”, afirma.
O caminhoneiro Cajau Antonelli escolheu trabalhar com insumos e cargas que não são perecíveis, por isso tem horários mais flexíveis. Ainda assim, ele mantém contato com colegas de todos os segmentos na estrada e constata: muitos caminhoneiros trabalham durante todo o dia montando a carga e, durante a noite, precisam pegar a estrada.
“Fazendo uma análise a gente percebe que no Brasil o cara transporta alimentos perecíveis em um caminhão que não é frigorífico, é aberto. Se ele não acelerar a carga vai estragar. Se chegar atrasado, perde o frete ou paga uma multa de 50% do valor da carga. Conheço muito chefe de família que não queria usar drogas, mas, nesse contexto, o que fazer? As empresas sabem disso, mas a maioria das embarcadoras não fiscalizam as horas trabalhadas e a velocidade atingida”, analisa o profissional.