Boate Kiss: Sobrevivente da tragédia se especializou em prevenção de incêndio e casou com enfermeira que cuidou dele
Por G1
A tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, transpassa a vida de Emanuel Pastl, de 27 anos, de inúmeras formas. Algumas pesadas, como carregar a memória daquela madrugada, os dias entubado após inalar a fumaça tóxica e a perda de uma amiga. Outras são mais leves, pois o levaram a trabalhar na área de prevenção de incêndios e a conhecer a esposa e mãe de sua filha.
Naquele janeiro de 2013, Emanuel estava de férias do curso de Engenharia de Minas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. O irmão gêmeo Guilherme ainda vivia os efeitos de greves no ano anterior e permanecia em Santa Maria, onde cursava Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Por isso, para que não passassem o aniversário de 19 anos separados, viajou à cidade do Centro do estado para comemorarem juntos.
A festa na Kiss, no sábado dia 26 de janeiro daquele ano, foi escolhida para a celebração de mais um ano juntos, o que seria completado três dias depois. A casa noturna estava tão lotada que alguns colegas de Guilherme decidiram ir embora mais cedo ou buscaram a área de fumantes, na rua, para fugir do desconforto. No momento do incêndio, permaneceram apenas os irmãos, a namorada e cunhada de Guilherme, na época, e um amigo de infância deles.
“Achávamos, inicialmente, que era briga, porque não tínhamos visão do palco. Começou a gerar um certo tumulto e nos escoramos no bar para deixar as pessoas passarem. Mas uns 30 segundos depois começamos a visualizar fumaça e tivemos a percepção que era incêndio, e então começamos a sair em direção à saída de emergência”, recorda Emanuel.
Não há como descrever de que maneira o cérebro dele assimilou todas as informações ao mesmo tempo, mas há como ter certeza de que, de certa forma, os ensinamentos do pai, um bombeiro aposentado, influenciaram na reação dos irmãos. Acostumados a assistir a treinamentos desde criança, eles buscaram alternativas para lidar com a situação, como tentar não entrar em pânico, buscar o escape imediato e poupar a energia para controlarem a respiração.
Eles se desencontraram, na saída, mas um confiava que o outro saberia como agir. Emanuel conseguiu deixar o local sozinho, guiando o caminho com a lanterna do aparelho celular e buscando a luz na área externa da boate. Ainda assim, sofreu queimaduras nos braços e nos olhos e precisou ser entubado devido à inalação da fumaça tóxica.
“Do momento de saída mesmo, eu não me lembro. Eu me lembro de estar na rua, caminhando, alguns segundos assim. Eu acho que estava com pouco oxigênio na casa noturna, respirei um pouco fora, mas o momento específico de saída eu não me lembro. Dali a polícia já me levou para o hospital”, diz.
Ele foi atendido no Hospital de Caridade, onde foi entubado. Outro amigo o reconheceu e o acompanhou até a chegada da mãe. Como a família é de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, ele foi transferido para o Hospital Universitário junto do irmão e outra jovem.
A futura esposa
Foram 10 dias em tratamento intensivo, metade deles com auxílio de ventilação mecânica. Ainda que com lesões pulmonares menos graves do que o irmão, ele precisava trocar as bandagens devido a queimaduras de terceiro grau no braço direito. E uma das responsáveis por isso era a enfermeira do grupo de pele Mirélle Bernardini.
Depois que teve alta, Emanuel ficou em recuperação por 30 dias em casa. Passou, então, a falar com Mirélle pelas redes sociais, que estava em férias na casa da família, em Agudo, a 230 km de Canoas e perto de Santa Maria.
“A gente começou a conversar, se apaixonar, a se encantar um pelo outro, e, quando ela voltou, a gente começou a namorar e casamos. Mas, em relação à Kiss, somos supertranquilos. Não tenho nenhum trauma, nem ela, por ter me atendido”, conta o marido de Mirélle e pai da Antônia, de dois anos.
Eles se casaram em janeiro de 2018, cinco anos depois de se conhecerem. Antes, Emanuel se formou em Engenharia de Minas e começou a trabalhar em uma empresa de proteção contra incêndios, o que fez com que se especializasse em segurança do trabalho e segurança contra incêndio.
Atualmente, é engenheiro de segurança, contribuindo com a Associação Brasileira de Normas Técnicas na elaboração de protocolos e dando palestras sobre o assunto como técnico e como sobrevivente da tragédia na boate.
“O quanto foi minha decisão racional para seguir nesse ramo, eu não sei. Só sei que me encontrei nele. Não sei se é um dever — mas sigo nele. Não tive uma decisão racional: ‘Vou fazer por causa da Kiss’. Não tive esse ímpeto. Foi uma oportunidade e estou dando meu melhor. Talvez uma vontade de Deus, que me empurrou para isso, não sei”, afirma.
Até pelo conhecimento técnico adquirido, Emanuel lista com facilidade algumas das irregularidades que, para ele, levaram à tragédia: saída única de emergência, falta de percepção do risco em se fazer um show pirotécnico dentro de um local fechado, material inadequado para isolamento acústico, extintor despressurizado, ausência de alarme de incêndio, sistema de distribuição de ar que carregou a fumaça para onde as pessoas saíam e carência de sinalização de emergência que indicasse o caminho correto para o lado externo.
“Quando caiu o centro de distribuição de energia, ficou tudo escuro e a iluminação de emergência não funcionou. O problema é que a única abertura que tinha, além da porta, era a janela do banheiro. E tinha um poste de luz dando uma claridade para dentro. Essa situação de escuro e sem sinalização com placas fotoluminescentes, fez com que muitos, mais de 100, em vez de irem para a saída de emergência, pela porta, foram para o banheiro”, avalia.
Rememorar isto quase nove anos depois o faz pensar no que poderia ter sido diferente e preservado tantas vidas. A distância faz com que assimile parte de sua história com tranquilidade. Por outro lado, manifesta um sentimento de injustiça que atrapalha a cicatrização de uma ferida há tento tempo aberta na vida de centenas de famílias e de uma cidade.
“Já está em uma situação injusta. Mesmo que saia uma condenação ou absolvição, olhando no todo, já é uma situação injusta por essa morosidade”, opina.