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Primeira criança a morrer de Covid-19 no AC é homenageada: “Ele não viveu o que tinha que viver”

Por RENATO MENEZES, PARA CONTILNET

Douglas Emanoel foi a primeira criança a morrer em decorrência das complicações ocasionadas pela Covid-19. Foto: Arquivo pessoal.

A vida das quase 2 mil famílias acreanas que perderam entes queridos para a Covid-19 não foram mais as mesmas após a pandemia deflagrada em 11 de março de 2020. Tentar recomeçar é sempre um desafio diante da dor de perder um parente, principalmente para uma doença sorrateira, imprevisível e que não escolhe um público-alvo para atacar. Em meio à saudade que, apesar do tempo, não cessa, a pedagoga Nágila Suely Junqueira dos Santos tenta levar a vida da forma como pode após a partida precoce e dolorosa de seu caçula, Douglas Emanoel, de apenas quatro anos, após contrair o vírus em maio de 2020. Dentre as mais de 1,8 mil vítimas, este é um dos nomes que estão gravados no Memorial às Vítimas da Covid-19, localizado às margens do Lago do Amor, próximo ao Instituto de Traumatologia e Ortopedia do Acre (Into-AC) e inaugurado na última terça-feira (11).

A criança sorridente e esperta estava a menos de dois meses de completar cinco anos quando morreu na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do quinto andar do Pronto Socorro de Rio Branco. O pequeno, que foi a primeira criança a morrer de Covid-19 no Acre, desenvolveu uma inflamação nas células do músculo do coração – conhecida por “miocardite” –, que dentre os motivos, pode ser causada por infecção viral. Sem dúvidas, aquela madrugada de 31 de maio de 2020 jamais sairá da cabeça da mãe.

“Os médicos estavam desolados quando eu entrei na UTI. Eles me deixaram entrar, e estava todo mundo chorando. Ele disse que a equipe parou para ajudar o Douglas, e pediu perdão por não ter conseguido salvar meu filho. Não podíamos vê-lo, mas ele me disse que não tinha coragem de fazer isso com a gente, e nós entramos (para se despedir). A gente já estava com Covid também”, disse, pontuando que em casos de pessoas que morrem de Covid-19 com menos de 14 dias de infecção, não há a possibilidade de velório para evitar possíveis contágios.

Douglas Emanoel morreu aos quatro anos de idade em Rio Branco, em 2020. Foto: Arquivo pessoal.

EXAMES

Foi tudo muito rápido, segundo Nágila. Em 28 de maio de 2020, ele foi diagnosticado com Covid-19, resultado este que só foi possível constatar após a coleta de amostra tirada diretamente da traqueia do pequeno, já que os testes convencionais não positivaram. Antes, os médicos acreditavam que fosse uma virose, tendo em vista que não era muito comum, na época, uma criança desenvolver quadros mais graves de Covid-19.

Registros da mãe na gestação e de um dos aniversários de Douglas Emanoel. Foto: Arquivo pessoal.

“Ele não tossia, não tinha nenhum sintoma da Covid, só vomitava, teve febre alta e desmaiou. Aí o médico mandou dar dipirona e vir pra casa. No quinto dia (de doente), ele começou a vomitar, a delirar e não queria acordar. Ele queria só dormir e até a urina mudou de cor, ficou alaranjada, que foi quando ele me chamou e eu olhei no vaso. Aí eu já corri para a UPA, fizeram um exame e deu uma infecção”, complementou.

Por conta disto, o médico plantonista pediu para a mãe trazer a criança no dia seguinte para que mais exames fossem feitos. Quando fizeram, identificaram lesões no fígado e nos rins. Logo, pensaram em hepatite viral, mas não sabiam a origem daquilo. Até que naquela madrugada, a criança começou a ficar cansada. O médico mediu a saturação, que apontou normalidade, mas a mãe não se contentou, tendo em vista que o menino estava visivelmente abatido.

“Aí eu disse: ‘não, o senhor pode fazer muito mais do que isso. É normal estar cansado assim? O senhor queria estar assim?’ Aí ele disse que não, e eu falei: ‘e o senhor acha que meu filho tá cansado por que? O senhor tem que bater um raio-x’. Aí ele fez e já deu uma mancha. Logo de manhã, quando ele ‘jogou a bucha’ para outra médica, ela quando viu os exames, falou: ‘olha, mãe, isso aqui é Covid, e grave. Está lesionando os órgãos dele. Vou ter que encaminhar ele para o PS porque aqui não tem estrutura pra ele’”, lembrou.

PRONTO SOCORRO

Ao chamarem o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), o menino, que já estava com plaquetas baixas no sangue, foi levado às pressas para o Pronto Socorro. O olhar dos médicos, naquele momento, já indicava o procedimento a ser realizado: a intubação. Mas em meio àquele caos, mais um problema emergia: não tinham estrutura para atender uma criança infectada com o vírus.

Após idas e vindas, incertezas sobre seu verdadeiro diagnóstico de saúde e conversas da equipe médica com o diretor do hospital, para evitar que Douglas viesse a morrer dentro da própria sala de emergência, conseguiram uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em regime de isolamento no Hospital da Criança para realizarem o procedimento até que mais um teste de Covid fosse feito.

O caçula do casal irradiava a casa com sua energia. Ele passou dois dias intubado na UTI do Pronto Socorro. Foto: Arquivo pessoal.

Como o resultado deu positivo, retornaram com ele para o quinto andar do P.S, já que o hospital onde estava ainda não tinha o devido suporte.

“Ele tinha melhorado 60%, mas o problema era que o coração dele estava muito inflamado. Todos os órgãos dele estavam melhores, e ele aparentemente também, apesar de que quando ele foi intubado, ele sangrava pelos olhos, porque estava dando hemorragia. Mas no outro dia ele já estava estabilizado. O problema dele foi a miocardite que deu, porque inflamou o coração. Os remédios não entravam”, contou.

“ERA ORAR E PEDIR A DEUS”

Isto fez com que ele desenvolvesse a Síndrome de Kawasaki, que é uma doença infantil rara que acomete, principalmente, crianças de um a cinco anos. Esta doença consiste na inflamação dos vasos ocasionado por um quadro inflamatório no corpo. A causa é desconhecida, mas cientistas e médicos especulam que crianças que possam ser propensas a desenvolver esse quadro, tenham como “gatilho” uma infecção qualquer.

“Era orar e pedir a Deus. Para eles conseguirem estabilizar o Douglas, ele teria que ter sido diagnosticado antes. Com cinco dias, (o quadro dele) já estava muito elevado”, complementou.

Ele ficou dois dias intubado, não resistiu às complicações e morreu. Após a morte dele, criaram uma ala no Hospital da Criança para atender casos de Covid em crianças.

Família tenta levar a vida após partida precoce de Douglas Emanoel, vítima da Covid-19. Foto: Arquivo pessoal.

“ELE NÃO VIVEU O QUE TINHA PARA VIVER”

Hoje, Nágila tenta levar a vida fazendo cursos de depilação, e lutando contra pensamentos negativos para conseguir seguir em frente com seu marido e sua filha de 19 anos. Uma das metas que ela teve, quando se formou como pedagoga, era de começar a trabalhar na área quando o filho tivesse cinco anos, afinal, ela não queria perder nenhuma fase do crescimento do menino. Após esta perda irreparável, até o brilho pela profissão e pelo hobbie que tinha de fazer bolos sob encomenda foi se esvaindo. Segundo ela, tudo lembra ele.

“Hoje é uma luta grande que eu passo todo santo dia da minha vida. Eu pensei que eu ia levar meu filho e trazer de volta. É muito difícil. A gente está preparado para perder uma pessoa idosa, que viveu muito, mas uma criança dói muito porque a gente sente que ele não viveu o que tinha que viver. Para mim é terrível, nos primeiros dias eu queria morrer, eu ficava pensando que o vírus deveria ter me levado, mas infelizmente não é como a gente quer”, lamentou.

“NÃO DESEJO ISSO PARA MÃE NENHUMA”

De acordo com ela, é impossível conter a emoção quando vê alguém se vacinando. A mãe dela, de 70 anos, contraiu a Covid por duas vezes. Na primeira, a idosa passou 21 dias internada no Into-AC com o esposo, que veio a falecer. Na segunda, após estar vacinada com as duas doses, os sintomas foram tão leves que imaginavam ser um resfriado. Se Douglas estivesse vivo, Nágila conta que sem pensar duas vezes, o levaria para tomar a vacina.

“Basta ter um pouco de inteligência. A vacina nos ajuda até a não ter a forma grave. Claro que cada um reage de uma forma, mas em uma guerra vale tudo para tentar nos salvar. Se não fosse essa vacina, estaria pior. Eu já peguei duas vezes, e graças a Deus que meu organismo reagiu melhor. As pessoas gostam de falar o que não sabem. Eu vivi na pele a perda de um filho e eu não desejo isso pra mãe nenhuma. Eu choro quando vejo uma vacinação”, finalizou.

Nágila Suely e seu marido, Vanderlei Marcos, no túmulo de Douglas Emanoel, primeira criança vítima da Covid-19 no Acre. Foto: Arquivo pessoal.

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