Durante 15 anos, a vinheta da Globeleza, na Globo, teve o mesmo rosto: o da carioca Valéria Valenssa, 50, que ocupou o posto dos 18 aos 33 anos, quase sem parar. Todos os anos, no Carnaval, ela aparecia sambando, nua, coberta apenas por pinturas corporais. E, apesar de ser lembrada assim por gerações, ela conta, em entrevista a Universa, que não se via como símbolo de sensualidade.
“Eu não me sentia sex symbol porque a Globeleza não era sobre o corpo ou o nu em si. Não passava pela minha cabeça que fosse algo sexualizado. Era um trabalho muito artístico, desde a designer que fazia todo o desenho, o maquiador, toda a equipe envolvida”, lembra. “Era um trabalho bonito. Essa não era a intenção e, justamente por isso, passava em todos os horários. Às vezes você olha uma pessoa de roupa muito mais sensual do que uma pessoa nua”, diz.
“Mas as pessoas me viam daquela forma, sim. Muitas vezes eu ia a algum lugar e achavam que eu chegaria pintada. Trabalhar com o nu exige uma certa postura, pois as pessoas te veem nuas, acham que você vai estar nua o tempo todo. Precisei manter uma postura firme para as me olharem com respeito e não com vulgaridade”.
Embora lembre com carinho a admiração do trabalho que “transformou sua vida”, como conta, Valéria acredita que a sua Globeleza, a primeira de todas, que estreou em 1990, não faria tanto sucesso atualmente por causa das mudanças na TV e na ideia de padrão de beleza.
“Hoje, a vinheta do Carnaval não faria tanto sucesso quanto fez na época. Estamos em outro tempo. A TV era mais liberal. E aquela era a época do topless da Monique Evans, da Luma de Oliveira, o biotipo da mulher hoje é totalmente diferente, antes era mais natural. A gente tem que respeitar a passagem do tempo”.
Nesta entrevista, concedida por telefone e a poucos dias da data em que ocorreria o Carnaval, adiado para abril, a eterna Globeleza também fala sobre racismo, representatividade e a depressão que sofreu após ser demitida da Globo.
“Nunca sofri racismo. Ou, pelo menos, nunca percebi”
Valéria Valenssa conta que, desde criança, seus interesses estavam ligados à beleza e à dança. Sonhava em ser chacrete, uma das dançarinas do programa do Chacrinha, fez cursos de modelo e participou de concursos de beleza – um deles, em 1989, foi o ponto de virada que a transformou na Globeleza.
Ela lembra que, naquele ano, venceu o concurso Garota Tropical e foi convidada a participar também do Garota de Ipanema, que tinha como inspiração Helô Pinheiro, a mulher branca e loira, hoje com 76 anos, que inspirou a canção de Antônio Carlos Jobim.
“Falei: ‘Mas esse concurso não tem nada a ver comigo’ [por ser uma mulher negra]. Mas me disseram que estavam com poucas candidatas e precisavam de mim só para preencher as vagas da primeira eliminatória”.
As fases foram passando, e Valéria chegou à final. Ficou em quarto lugar da competição que tinham como jurados José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então diretor na Globo, e Hans Donner, diretor artístico da emissora responsável por criar a Globeleza — e com quem Valéria foi casada por 22 anos.
Quando questionada sobre racismo, Valéria é rápida na resposta: diz que nunca sofreu nenhuma discriminação. Segundos depois, ponderou: “Ou, pelo menos, nunca percebi”.
“Comecei a fazer a vinheta do Carnaval bem novinha, aos 18 anos. Querendo ou não, a Globeleza, o alcance que ela tinha e o fato de estar na Globo me davam alguma blindagem. Se as pessoas me olhavam de uma forma diferente ou me tratavam de uma forma diferente, eu não percebia”, disse.
Depois de tantos anos no ar, todos os Carnavais, ela entende que sua Globeleza foi importante como referência para meninas negras.
“Tinha uma representatividade muito grande. A identidade de uma criança ou adolescente é formada quando você tem referências. Nós precisamos disso. Mas na época eu não tinha ideia disso, não tinha esse conhecimento, só entendi de uns anos para cá. Hoje em dia, representatividade e autoestima são muito discutidas. Ainda bem.”
Imagem: Reprodução/Instagram
“Quando fui demitida da Globo, vivi depressão profunda”
De 1990 a 2005, Valéria esteve na vinheta de Carnaval da Globo todos os anos, inclusive em suas duas gestações. Na primeira, de João, gravou grávida, quando a barriga ainda não aparecia; na segunda, de José, teve o corpo todo digitalizado para a propaganda.
No ano seguinte, foi demitida — e sofreu um enorme baque.
“Depois que eu tive os meninos, me programei para fazer pelo menos mais dois carnavais antes de me aposentar, mas eles me dispensaram. Eles não me deram oportunidade de ficar. É duro trabalhar por tantos anos numa empresa, com contrato de exclusividade, e ser desligada da noite para o dia. Saí com uma tristeza muito grande, passei seis meses em uma depressão profunda”, lembra.
“Tinha consciência que aquele não era um trabalho para sempre, pois era um trabalho muito voltado para o corpo, e a idade chega. Mas, naquele momento, eu não estava preparada, e tive um sentimento de perda. Estava realizada como mãe, mas sentia que tinha perdido algo”.
“Naquele momento, eu estava muito sensível, com dois bebezinhos, totalmente fora de órbita. Eu só chorava e meus filhos eram meu remédio, porque eu tinha que cuidar deles, eles dependiam de mim. Eu não saía de casa, vivia entre meu quarto e o quartinho deles”.
“Sempre quis ser mãe, era um sonho, e saí no auge. Mas hoje acho que tudo aconteceu no momento certo”, completa.
Hoje, Valéria leva uma vida mais tranquila: se dedica aos filhos, de 17 e 18 anos, e ao seu canal no YouTube, onde conta passagens da trajetória na Globo, fala de autoestima e recebe alguns convidados. No Carnaval, nada de bloco ou avenida: depois de anos “vivendo intensamente” essa época do ano, ela prefere descansar, ficar longe da cidade.