Após meses de queda drástica nos indicadores da Covid-19, o país voltou a ver uma estabilidade e indícios de altas nos números de casos e óbitos pela doença. Nesta semana, a Fiocruz alertou para uma leve tendência de crescimento nos casos de Síndrome Respiratória Aguda (SRAG) em adultos, embora ainda baixos. A pequena mudança no cenário desperta preocupação quando o Brasil vive um dos patamares mais baixos dos indicadores em toda a pandemia. Mas afinal, há risco de uma nova onda no país?
Especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que a tendência é de que o país não enfrente novas ondas de hospitalizações e óbitos pela Covid-19 nos próximos meses.
Para eles, mesmo que ocorra um aumento no número de novos casos, motivado pelas flexibilizações, redução na testagem e subvariantes da Ômicron, isso não deve se espelhar em uma piora nos demais indicadores. Porém, há um caminho ainda que deve ser seguido para garantir esse cenário, que passa por aumentar as coberturas vacinais da terceira dose, que hoje contempla pouco mais de 41% da população, e da quarta dose entre os idosos, que foi aplicada em apenas 16% daqueles com mais de 80 anos, apontam dados do Ministério da Saúde.
— Nós temos um alto percentual com duas doses, o que segura contra hospitalização e óbito, mas não é o ideal. Temos muitas pessoas sem a terceira e a quarta dose, que estão mais em risco. As pessoas não estão voltando para o reforço porque perderam a sensação de urgência, já que estamos nesse cenário melhor. Mas sabemos que, em uma população que não consegue atingir um percentual elevado de vacinação, a doença segue circulando e eventualmente chega nos mais vulneráveis — explica a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência e colunista do GLOBO.
Eles destacam ainda que o momento para se pensar em medidas que previnam o país de um novo cenário de altas é agora, uma vez que falar sobre intensificar a vacinação quando os hospitais estiverem cheios pode não ser tão eficaz.
— Acelerar a vacinação não é algo que acontece de uma semana para outra. Então, temos de nos prepararmos para evitar problemas daqui a dois três meses, a gente precisa tomar uma atitude agora. Não adianta falar sobre isso quando estivermos numa onda com aumento nos números — defende o médico geneticista Salmo Raskin, diretor do laboratório Genetika, de Curitiba
Um estudo de pesquisadores australianos, chilenos e britânicos, que buscou entender o que caracterizaria uma nova onda da Covid-19, mostra que é preciso uma taxa de transmissão superior a 1 – ou seja, que esteja provocando aumento no número de casos – por ao menos 15 dias. Isso porque variações nos números, ainda que para cima, por curtos períodos de tempos podem indicar apenas pequenos repiques causados por flexibilizações, mas não necessariamente resultarão em uma nova alta contínua dos indicadores.
— Nesse estudo, eles mostram que o tempo mínimo observado em uma série de países para o que foi caracterizado uma onda foi de uma alta durante cerca de 15 dias consecutivos. Então, um aumento por tempo menor que esse período não seria ainda uma nova onda — explica Raskin.
A seguir, os principais desafios que o país tem de enfrentar
No Brasil, o primeiro reforço, ou terceira dose, é recomendado pelo Ministério da Saúde a todos acima de 18 anos e adolescentes imunossuprimidos, no período de quatro meses após a segunda dose. Para Natalia, o surgimento de novas variantes comprovou que o esquema vacinal deve ser considerado completo apenas com as três aplicações.
Embora essa cobertura esteja elevada entre os mais idosos, chegando a aproximadamente 90% dos mais de 70 anos, ela ainda é considerada baixa em outras faixas etárias. Entre aqueles com 18 a 35 anos, por exemplo, nem 40% receberam a aplicação. E isso impacta diretamente a proteção a nível nacional.
Em janeiro, o Brasil tinha 67,4% da população com as duas doses. Hoje, apesar de ser esperado um percentual semelhante com a terceira, apenas cerca de 41% dos brasileiros buscaram o reforço. Além disso, desde que a situação sanitária começou a melhorar, após o pico da Ômicron, o ritmo de vacinação está cada vez mais baixo.
No meio de janeiro, o país tinha uma média elevada de 740.713 aplicações diárias de doses de reforço. Já na última semana de abril, esse índice havia caído para uma média de 176.938 doses aplicadas por dia – uma queda de 76% no ritmo de imunização.
— Nesse contexto, em que não temos previsão de quando aparecerão novas variantes, e como elas serão, a gente precisa de uma cobertura ampla para se preparar. Se não estivermos todos protegidos com a vacinação, poderemos ter consequências graves nos próximos meses — alerta a imunologista e doutora em Biociências e Fisiopatologia, Letícia Sarturi.
Para ampliar esse percentual, os especialistas defendem que é responsabilidade do governo promover campanhas publicitárias, buscas ativas por telefones e contatos de e-mail e outras estratégias de comunicação que lembrem quem ainda não se vacinou a importância de atualizar o esquema.
— Isso do ‘depois eu faço’ acaba prejudicando muito a vacinação. Muita gente que está devendo essa dose não é por medo, mas porque está acomodada em relação a essa atualização. Então precisa de uma iniciativa do governo que chame essas pessoas, mas a gente não vê essa campanha ativa no Brasil — afirma a presidente do Instituto Questão de Ciência.
Os especialistas reforçam também que o número de idosos vacinados com a quarta aplicação ainda é extremamente baixo, e lembram que esse é um grupo naturalmente de risco e que responde pior às vacinas – por isso a importância de um segundo reforço.
— Já é bem conhecido que idosos têm uma resposta vacinal menos robusta que a população mais jovem, e que a imunidade cai mais cedo que nos demais grupos etários. Então é preciso lembrar que a vacinação completa é aquela com todas as doses previstas para eles — explica a infectologista Tânia Vergara, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Embora considerada imprescindível, a cobertura com o segundo reforço não chegou a 10% da população com mais de 60 anos, mostram dados do Ministério da Saúde. No Brasil, a pasta recomenda a quarta dose a todos com mais de 70 anos ou imunossuprimidos, mas alguns estados estendem o público-alvo para pessoas acima de 60 anos e profissionais da área da saúde.
No entanto, apesar de a pasta já ter orientado a quarta dose para os mais de 80 anos há mais de um mês, a cobertura nesse público não chegou nem a 18%. Entre aqueles com 70 a 79 anos, esse percentual segue abaixo de 10%.
Esse contexto preocupa especialmente uma vez que grande parte dessa faixa etária teve seu primeiro esquema vacinal com a CoronaVac que, embora importante para a campanha de imunização, demonstrou ser menos eficaz entre os idosos. A recomendação do Ministério é que o reforço seja feito preferencialmente com a vacina da Pfizer.
— Todas as vacinas são importantes e têm o seu papel. Mas, o esquema da CoronaVac mostrou produzir um menor número de anticorpos e proteção contra a Ômicron nesse público. Por isso, os idosos que receberam as primeiras doses com essa vacina têm uma necessidade ainda maior de atualizar o esquema com as quatro doses — explica a imunologista Letícia Sarturi.
Subvariantes e reinfecção
A maior ameaça hoje ao cenário epidemiológico positivo do país seria o surgimento de uma nova variante que escapasse totalmente à imunidade conferida pela vacina ou por infecção prévia, ou que causasse quadros mais graves da doença.
No entanto, ainda que subvariantes da Ômicron com maior potencial de reinfecção tenham sido detectadas em locais como Nova York e África do Sul, o geneticista Salmo Raskin explica que elas ainda não devem ser vistas com maiores preocupações.
— Essas sublinhagens podem ter um maior potencial para reinfecção, mas aparentemente não provocam um aumento em hospitalizações e óbitos, especialmente entre os vacinados. Porque as vacinas atuais ainda protegem contra desfechos graves, mesmo com uma eficácia reduzida para infecção — afirma o especialista.
Uma maneira de se evitar o surgimento dessas novas variantes é justamente intensificar a imunização, inclusive a de crianças, que ainda estão com uma baixa cobertura no Brasil.
— E eventualmente vamos ter que ampliar a terceira dose também para essas crianças e adolescentes aqui, como foi solicitado recentemente nos EUA — destaca Raskin.
Os especialistas também chamam a atenção para o fim do uso da máscara em locais de riscos como fatores que podem provocar um aumento nos casos.
— Até hoje, as pessoas não entendem muito bem, por exemplo, onde e quando é bom usar uma máscara. Precisamos de uma campanha educativa para que as pessoas entendam que elas são importantes em locais como transportes públicos e ambientes fechados sem ventilação e com muita gente, locais de risco — defende Natalia.
Além disso, eles apontam a queda na testagem, que leva muitas pessoas a circularem nas ruas sem saber que estão contaminadas, como um ponto negativo. Segundo dados da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), houve uma redução de mais de 81% na realização de testes entre janeiro e março deste ano.
Antivirais e novas vacinas
Garantir o acesso aos antivirais autorizados pela Anvisa para o tratamento da Covid-19 de pessoas com maior risco para casos graves também é considerado importante pelos especialistas. É o caso do Paxlovid, da Pfizer, e do Molnupiravir, da MSD.
Além disso, a longo prazo, uma nova geração de vacinas pode aumentar o controle da doença pelo mundo e promover uma imunidade mais robusta contra eventuais novas variantes do coronavírus. Porém, embora farmacêuticas como Moderna e Pfizer testem versões adaptadas para a Ômicron, a microbiologista Natalia Pasternak explica que o melhor cenário são imunizantes genéricos ainda em desenvolvimento que sejam capazes de abranger mais mutações do Sars-CoV-2, oferecendo proteção duradoura contra a Covid-19.