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Crônica: Um surto de delinquência na Academia Acreana de Letras

Por Paulo Victor Poncio de Oliveira, para o ContilNet

Paulo Vitor/Foto: Reprodução

Desde criança ele tinha o costume de acordar muito cedo. Antes mesmo da chegada de sua secretária, ele já havia organizado as almofadas no sofá e feito seu próprio café, descafeinado, sem açúcar e com uma pitada de canela em pó. Limpava a mesa da sala de jantar, a pia do banheiro e as sujeiras que sua gata Osha eventualmente tivera produzido na noite anterior.

Logo após, fazia alguns exercícios abdominais no chão de sua sala de estar enquanto assistia os primeiros boletins jornalísticos matutinos. Assim, depois de um longo banho com água gelada, estava pronto para iniciar os trabalhos programados para aquele dia: Dois artigos de opinião que escrevia para jornais locais, uma crônica social encomendada por uma revista eletrônica, e finalmente, o prosseguimento do já atrasado terceiro capítulo de seu novo romance – o sétimo de sua carreira como jovem escritor de renome no contexto local, recentemente eleito para uma vaga de imortal da Academia Acreana de Letras – a casa maior da literatura de seu querido Estado.

Seus livros, muito procurados, viajavam entre a filosofia, a psicologia e muitas vezes a ficção, sempre desenvolvendo teses sobre o sentido da vida, a cultura da modernidade e a forma como as pessoas lidam com a coragem, o perdão e não menos importante, a felicidade. Desse modo, construiu uma carreira literária sólida, elogiada por quase todos.

Ainda na adolescência ele já mostrava talento para as artes. Tentou ser músico, produtor cultural, professor de literatura. Buscou inspiração em figuras da cena cultural acreana que, anos depois, viriam a ser seus colegas confrades na própria Academia. Viajou nas poesias de Robélia Fernandes, Edir Figueira e Mauro Modesto, assim como nas crônicas de Íris Célia Zannini, Francis Mary e Francisco Dandão – apesar de não ser muito fã de futebol. Buscou influências nas novelas de Glória Perez e nos romances regionais de Silvio Martinello e Florentina Esteves, assim como riu com os pitorescos textos de Naylor George e João Crescêncio de Santana, e se emocionou com as teorias históricas de Jorge Araken e Maria José Bezerra.

Para ele, escrever era tudo: a forma que tinha encontrado de expressar toda sua sentimentalidade e amor à cultura de sua região de nascimento, cada vez menos valorizada em um ambiente político de contínuas agressões às artes no contexto mundial.

Em virtude de sua expressiva capacidade de escrita e comunicação, passou a ser muito procurado por redatores de jornais, jornalistas, resenhistas e mesmo escritores em início de carreira. Suas orientações eram certeiras, suas sugestões eram acatadas e muito bem quistas no contexto dos textos que eram publicados nas colunas sociais, de reflexão filosófica e cotidiana. Assim, com o tempo, passou a escrever para mais e mais jornais e portais eletrônicos.

De alguma forma, passou a ser tratado como uma espécie de terapeuta, uma figura que oferecia, através de seus textos, bons conselhos para todos aqueles que o liam. Escrevia sobre a vida das pessoas e opinava com a autoridade de quem sabia o que estava falando. Sabia fazer rir e chorar… Seu texto abraçava, mas também tecia duras críticas quando necessário – talvez fosse a forma que achara para exercer sua cidadania.

Era ainda um jovem estudante colegial quando descobriu que sua maior vocação era mesmo a compreensão da mente humana. Sempre adorara dar conselhos, ouvir sobre os problemas de quem quer que fosse, e dar sua opinião. E isso se tornou sua maior bandeira de luta, quando anos depois, frustrado por não ter conseguido cursar a tão sonhada graduação em Psicologia, começou a escrever, com muito talento, sobre a vida humana em seus variados contextos.

Seus leitores se tornaram, aos poucos, uma das paixões de sua vida, e esse era um dos motivos que o faziam estudar cada dia mais sobre eles. Lia sobre psiquiatria, sociologia, filosofia; assinava revistas de medicina, direito e ética. Onde quer que fosse, levava consigo seu laptop sempre pronto para sua escrita; e seus esforços conseguiram torná-lo um dos mais respeitados pensadores de seu tempo e de sua Academia.

Em sua curta, mas intensa carreira, já havia escrito sobre todos os tipos de pessoas. Ou quase todos: Pessoas depressivas, com síndrome do pânico, fobia de multidão, de telefone, de água; figuras críticas aos abastados da sociedade ou que penalizavam impetuosamente os pobres e menos escolarizados. Gente de paz, e gente de guerra. Pessoas contra e a favor da descriminalização das drogas, do aborto, da eutanásia, da pena de morte; políticos de todas as siglas partidárias. E essa diversidade tão complexa de personalidades o encantava e o incentivava a continuar escrevendo. Mas ele precisava fazer mais.

Sua primeira providência foi aumentar ainda mais a quantidade de seus escritos. Assim, começou a escrever também durante a madrugada, e parou de dormir. Entretanto, notou que a quantidade de pedidos de textos não diminuía, pelo contrário… Já não se alimentava direito, não via mais seus jornais matutinos, não acessava internet. Sua força física começava a ruir, mas ele continuava. Não tinha tempo pra família, não tinha amigos e muito menos namoradas. Suas únicas companhias eram mesmo seu computador e seus escritos. E ele gostava disso.

Sua popularidade havia chegado em todos os lugares, e toda gente queria um de seus textos, um artigo, uma crônica, um livro abordando soluções para os problemas do mundo ou, em muitos casos, para seus próprios problemas pessoais, e ele escrevia.

Contratou secretárias para agendar suas palestras e viagens. Passou a escrever também sobre problemas culturais, políticos, governamentais, diplomáticos. Participava de programas de rádio, de TV, de internet. Depois escrevia sobre a rádio, sobre a TV, sobre a internet, sobre o produtor, o diretor, os câmeras-man das emissoras por onde passava.

Entretanto, passou a perceber que por mais que aconselhasse e escrevesse, mais as expectativas sobre seus novos textos aumentavam, e mais os problemas do mundo se repetiam. Nenhuma daquelas questões parecia se resolver, e ele passou a ter crises de ansiedade e pânico. Os traumas eram os mesmos, os problemas sociais continuavam, os preconceitos eram históricos.

Fora aconselhado a mitigar suas críticas, diminuir seus escritos, pausar por um tempo… mas ele não podia interromper aquela missão que, pra ele, extrapolava sua própria vontade. Para aquele homem, ninguém escreve só porque prefere… de alguma forma inexplicável, haveria uma energia superior que chega, sem aviso prévio, inspirando a mente e o coração para a escrita. Assim, era seu dever moral continuar, como forma de honrar todos aqueles que vieram antes dele: As décadas de professorado de Olinda Batista, Luísa Lessa, Margarete Edul Prado e José Dourado.

A contribuição educacional de Rosana Cavalcante, Alexandre Melo, Reginâmio Bonifácio, Eduardo Carneiro. Os inesquecíveis contos e crônicas de Val Amorim, Fátima Cordeiro, Elizeu Melo, Telmo Vieira, Álvaro Sobralino. Os marcantes ensaios de José Wilson Aguiar, Isac de Melo, Claudemir Mesquita. Os belos romances de Sanderson Moura, Moisés Diniz, Cláudio Porfiro, José do Carmo. As belas artes plásticas, visuais, musicais de Dalmir Ferreira, Enilson Amorim, Adalberto Queiroz, Hermógenes Neto. A sentimentalidade das poesias de Nilda Dantas, Renã Leite, Deise Brandão, Maria José Oliveira, Maze Oliver, Cecília Ugalde.

Contudo, não conseguiu fugir da santa tarefa à qual tinha se auto imposto. E passou a escrever sobre tudo que eventualmente sabia… sobre a corrupção na política, a malversação no empresariado, o racismo estrutural, a intolerância religiosa, os preconceitos de gênero e identidade. E escrevia, criticava, acusava, denunciava.

Então o governo preocupado com a repercussão nacional das denúncias feitas pelo escritor, conseguiu que suas publicações fossem sendo, uma a uma, censuradas e retiradas de quaisquer catálogos, e ele foi preso como um delinquente perigoso, pernicioso. E alguns mafiosos influentes e citados por ele em muitos de seus textos reveladores se sentiram afetados com tamanha repercussão e mandaram que o assassinassem na prisão, numa espécie de contenção de danos; e mandaram contratar homicidas profissionais para que o serviço fosse bem feito.

E enquanto os assassinos eram contratados, aquele homem, se deixando levar pela magia da inspiração que o guiava, passou a ensinar ao neto mais novo de um de seus companheiros confrades da Academia Acreana de Letras, a sua tão bela profissão.

Paulo Victor Poncio de Oliveira
Escritor, pesquisador, mestre em Psicologia Social e Educação

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