O que a mulher da casa abandonada tem a ver com você?

Que o formato de produção “podcast” virou febre no Brasil, todos nós já sabemos. Os jovens juram que é um fenômeno moderno, lançado no mundo nos últimos anos, mas trata-se de um tipo de entretenimento mais antigo do que a Teoria da Relatividade de Einstein… apenas mudou de nome, pois antes se chamava “rádio”. Contudo, de fato, o formato tomou outras proporções quando cruzou a fronteira entre o mundo das grandes empresas de comunicação e o terreno dos produtores independentes. Hoje em dia, qualquer interessado pode, e consegue com bastante qualidade, lançar um podcast sobre quaisquer assuntos, de modo que facilmente consegue ser ouvido por centenas e até milhões de pessoas – e isso é o que vem acontecendo com o mais novo queridinho dentre os podcasts de investigação criminal no Brasil: “A mulher da casa abandonada”, produzido pelo jornal Folha de São Paulo e lançado nas últimas semanas em todas as maiores plataformas de hospedagem de podcasts.

“A mulher da casa abandonada” conta a história de Margarida Bonetti, uma idosa moradora de uma mansão, nitidamente abandonada, localizada numa das melhores ruas de Higienópolis, o mais nobre dos bairros da capital de São Paulo. A pesquisa iniciou narrando a vida daquela senhora que, aparentemente, sofria de problemas mentais e provavelmente havia sido abandonada pela família naquela enorme casa. Contudo, no decorrer do tempo, descobriu-se que Margarida era, na verdade, procurada pelo FBI, o departamento de polícia federal norte-americano, acusada de ter mantido, nos Estados Unidos, uma brasileira em condições análogas à escravidão durante 20 anos, trabalhando sem receber salário.

A repercussão do podcast fez com que a casa virasse ponto turístico, e para além disso, iniciaram-se discussões de toda ordem nas bolhas de alcance das redes sociais, o que fez surgir uma polarização de opiniões sobre o caso da mulher. Para alguns, a idosa não passa de uma criminosa que deve pagar por seus crimes, que envolvem não só a manutenção de trabalho escravo, mas também racismo, visto que a referida empregada doméstica era negra. Já para outros, a idosa não tem culpa alguma de nada, pois não passa de uma velhinha frágil e abandonada pela família em condições insalubres, cujo crime provavelmente já deve ter prescrito.

A verdade nua e crua é que o brasileiro, na média, é um povo passional e cordial, assim como descrito pelo grande antropólogo Sérgio Buarque de Hollanda em seu livro “Raízes do Brasil” publicado em 1936. De modo que culturalmente o brasileiro encontra muita dificuldade em tratar racionalmente os assuntos que repercutem, seja na política ou na vida da sociedade, fato que gera polarizações e debates odientos que ignoram a realidade.

Ninguém duvida que Margarida Bonetti deve responder por seus atos. Nesse sentido, não somos nós que devemos julgá-la, mas sim as justiças brasileira e norte-americana, com base em Leis reguladoras de crimes internacionais. Mas fato é que ser humano algum deve morar em uma casa abandonada e é sobre isso que deve partir a nossa reflexão racional. Não se trata de negar seus crimes, ou muito menos de suprimir a crítica ao racismo – muito pelo contrário. Contudo, se não começarmos a entender que saúde mental é algo realmente sério, jamais seremos uma sociedade capaz de romper nossos ciclos de ódio. A mulher da mansão precisa de punição frente à Lei, mas também de proteção frente à sua condição de abandonada, idosa e mentalmente desequilibrada – não é impossível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. O que vemos é uma enxurrada de falas que ridicularizam a própria expressão “doente mental”, como se pessoas com condições mentais prejudicadas não tivessem direito a um julgamento ético e humano.

Talvez você não tenha uma grave doença mental, mas pode ter ansiedade, depressão, autismo, transtorno afetivo bipolar… e não gostaria de ser chamado de louco por causa disso – por isso devemos prestar atenção nos ciclos de ódio que nos cercam. Por que se tem uma reflexão que a mulher da casa abandonada nos traz é a de que saúde mental importa, e é um assunto que deve ser tratado sem sensacionalismo e nem ridicularização de condições que poderiam muito bem ser as nossas. Por isso, tenha calma e não polarize um debate tão sério: Menos julgamento e mais leitura sobre saúde mental, e sobre o que nós todos, eu e você, temos a ver com tudo isso.

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