Um celular escondido no móvel da sala 3 do centro cirúrgico registrou imagens chocantes do médico anestesista Giovanni Quintela Bezerra abusando de uma paciente, o que o levou a ser preso em flagrante no dia 10, no Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde cumpria plantão. Testemunhas que trabalham na unidade prestaram depoimento na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) do município e relataram o clima de desconfiança sobre o comportamento do médico em diversos procedimentos. O estopim para armarem a gravação escondida foram as suspeitas nos dois primeiros partos que o anestesista participou no mesmo dia pela manhã. Em um deles, uma das profissionais disse tê-lo visto com o pênis ereto durante o procedimento.Técnicas e enfermeiras notavam trejeitos e conduta médica de Giovanni diferentes dos outros anestesistas da unidade. Ele sempre ficava em pé próximo à cabeça das pacientes, mesmo após a aplicação dos medicamentos para o parto, quando o comum é o profissional fazer o acompanhamento dos monitores, que indicam os sinais vitais da paciente, sentado. Giovanni ainda tinha maneiras de bloquear que o restante da equipe visse a mulher do pescoço para cima, como usando o capote cirúrgico com a abertura para frente, o que ainda facilitou o abuso. Também era recorrente pedir que o acompanhante saísse da sala de cirurgia ao fim do parto, momento em que aplicava sedação excessiva na paciente.
Veja o que foi relatado em depoimento pelas testemunhas:
Testemunha A
A primeira testemunha a depor na Deam contou que desde o início de seu trabalho no Hospital da Mulher, há cinco meses com atuação no centro cirúrgico, há cerca de dois meses começou a participar de operações com Giovanni. Ela afirmou que no dia 10, quando aconteceu a prisão em flagrante, o anestesista participou de todas as cirurgias do turno da manhã. A profissional destacou que três das quatro salas do hospital estão atualmente em funcionamento para procedimentos de cesárea, e que os técnicos de enfermagem observam e ajudam nos partos quando necessário, mesmo quando não estão escalados.
A profissional conta que três partos foram realizados no domingo. No primeiro deles, ela notou “atitude estranha de Giovanni”, logo após a saída do acompanhante da mulher da sala de cirurgia.
“Giovanni usou um capote, fazendo uma cabana que impedia que qualquer outra pessoa pudesse visualizar a paciente do pescoço para cima”, disse em depoimento.
A atitude chamou a atenção da testemunha e de outras profissionais porque, como compara, os demais anestesistas se posicionam em lugar oposto, permitindo que todos da equipe possam ver o rosto da paciente durante o procedimento.
Já na segunda cirurgia do dia, a profissional participou auxiliando no procedimento e notou o uso do capote pelo médico de uma outra forma. Giovanni o vestiu, “alargando assim a sua silhueta, e se posicionando de uma maneira que também impedia de qualquer pessoa pudesse ver a paciente do pescoço para cima”, contou. Dessa forma, “Giovanni ainda posicionado na direção do pescoço e da cabeça da paciente, iniciou, com o braço esquerdo curvado, movimentos lentos para frente e para trás. Pelo movimento e pela curvatura do braço pareceu que estava segurando a cabeça da paciente em direção a sua região pélvica”.
A testemunha narrou o que presenciou para o restante da equipe de enfermagem, que também vinha suspeitando do comportamento do médico. O grupo então decidiu gravar a atuação de Giovanni durante a terceira cirurgia que ele participou no dia.
Para o flagrante, uma das profissionais deixou seu celular escondido na prateleira de um armário com porta de vidro na sala 3. Por ter ficado assustada com as atitudes de Giovanni, uma outra testemunha participou da terceira cirurgia. A profissional e outras técnicas evitaram entrar na sala para não reparar nas ações do anestesista.
A funcionária conta que as pacientes eram sedadas “de maneira demasiada” ao ponto de “nem sequer conseguir segurar os seus bebês” e que ficavam “fora de si”. A testemunha compara que quando as mulheres eram atendidas por outros anestesistas “jamais ficavam dessa maneira”.
Tais atitudes, segundo ela, já tinham sido notadas em atendimentos anteriores também, como Giovanni ficar sempre ao lado da cabeça da paciente, de uma forma “obstruindo o campo de visão de qualquer pessoa”, e que “ficavam bastante sedadas perdendo sua consciência”, o que teria ligado o “sinal de alerta” e a feito comentar sobre esse comportamento com os colegas de equipe.
De acordo com a testemunha, “nunca houve qualquer problema de relacionamento com Giovanni”, que “sempre a tratou bem e com respeito”.
Veja o passo a passo de como equipe de enfermagem desmascarou anestesista estuprador
Testemunha B
Uma segunda testemunha, que é lotada num setor que funciona como “sala de recuperação pós anestésico”, contou, em depoimento, que não costuma acompanhar as operações dentro do centro cirúrgico. Em plantões, a funcionária trabalhou com Giovanni, integrando a equipe que realizava os partos.
A profissional, que estava de plantão no dia da prisão, contou que antes do flagrante “a equipe começou a observar e comentar algumas atitudes estranhas” do anestesista. Entre elas, o fato de as mulheres serem sempre muito sedadas, “pois não é comum sedar a paciente durante o parto”. Segundo relatou, as grávidas “ficavam acordadas até determinado ponto e depois apagavam, só acordando quando já estavam na sala de recuperação pós anestésico.
Em uma das ocasiões, uma técnica de enfermagem relatou a ela “que tinha visto Giovanni limpando a boca das pacientes, que ficava muito próximo à cabeça delas, que usava dois capotes cirúrgicos para cobrir a visão das pacientes, o que não era normal, formando uma espécie de cortina”.
A testemunha salientou que “Giovanni era o único que usava capote, porque tanto os médicos quanto a equipe usam o pijama cirúrgico”.
A partir dessas observações, a funcionária passou a visitar a sala cirúrgica para observar o anestesista “e constatou que de fato, Giovanni se comportava de maneira estranha”. O capote era usado de maneira incorreta, com a abertura para frente, como se fosse uma capa. Em uma dessas visitas durante um procedimento, quando o médico percebeu que estava sendo observado, “se mostrava tenso e com um olhar desafiador, como quem dissesse “por que está me olhando?”, e, a partir de então, Giovanni passou a ter um comportamento rude” e “bastante arrogante”, contou em depoimento.
Para a profissional e as colegas de equipe, havia certeza de que Giovanni “estava cometendo algum tipo de abuso sexual com as pacientes, mas não entendiam como aquilo era possível, já que haviam outras pessoas na sala”. No vídeo do flagrante é possível ver pelo menos outras três pessoas no centro cirúrgico, sendo uma delas ao fundo e duas ao lado dele, a cerca de um metro, separadas apenas por um lençol.
No último plantão, no dia 10, ela conta que a equipe ficou tensa ao saber que Giovanni seria o anestesista. Nos dois partos anteriores ao flagrante, o médico manteve o mesmo comportamento e, em um deles, ao perceber a presença da testemunha na sala, ele, “aparentando estar tenso, chegou a fechar o capote, quando notou” que ela o olhou. Logo após, a profissional e os colegas de equipe se reuniram e decidiram gravar o terceiro parto, uma cesárea, “pois por se tratar de uma acusação muito séria, não havia como fazer de outra maneira”.
O terceiro parto ocorreu por volta de 14h30 e teve de ser transferido para a sala 3, onde há um armário com porta de vidro escurecida, móvel onde foi colocado um telefone celular para o gravar sem que percebesse. Com a mudança de sala, Giovanni questionou a uma técnica de enfermagem sobre a transferência, que apenas respondeu que havia trocado.
Uma das testemunhas acompanhou o parto e foi indicado que evitasse fazer “muito movimento na sala”.
O acompanhante da grávida assistiu ao parto e quando a cirurgia terminou, “Giovanni solicitou que o acompanhante se retirasse”. Durante o trabalho final dos médicos foi o momento em que o abuso aconteceu.
A equipe responsável por armar o flagrante voltou à sala apenas por volta das 15h para pegar o celular e então assistir à gravação. A testemunha conta que foi chamada pelos colegas e “ficou estarrecida” e as técnicas “ficaram desorientadas e criou-se um clima de horror”. A equipe tentou se manter calma para os atendimentos seguintes, enquanto isso, a profissional relatou o que tinha acontecido à supervisora e mostrou a ela a gravação. Em seguida, o material foi passado para a direção do hospital.
Segundo conta, Giovanni não entrou mais em nenhuma cirurgia neste dia, e chegou a perguntar a uma das técnicas se alguma paciente tinha feito alguma “ouvidoria” (reclamação).
Por volta de 19h, o anestesista chefe chegou à unidade e a equipe responsável pelo flagrante mostrou o vídeo. Ele então teria dito “apenas me dê cinco minutos”. A testemunha foi embora logo depois e não estava no hospital no momento em que Giovanni foi preso em flagrante.
Testemunha C
Há cerca de dez meses trabalhando no Hospital da Mulher, a testemunha contou não se lembrar desde quando Giovanni atuava na unidade. Eles ocasionalmente davam plantão juntos e participavam das mesmas cirurgias. Como primeiro relatou no depoimento, a funcionária “não percebia atitudes estranhas até porque estavam sempre na correria e focados nos pacientes, acreditando sempre que cada um ali agiria da forma correta”.
Em um dado momento, uma das colegas reuniu a equipe e disse ter estranhado o comportamento de Giovanni durante os partos. Uma outra profissional teria destacado a proximidade de Giovanni à cabeça das pacientes, “sempre em pé, agindo de forma estranha”, que teria avisado a todos que ficassem atentos “quando estivessem em cirurgia para descobrirem se algo estava acontecendo”. Após esse alerta, a testemunha então lembrou que observava que as mulheres atendidas pelo médico “saiam sempre da cirurgia muito dopada, além do normal se comparado a pacientes de outros anestesistas e que isso dificultava que as pacientes de praticar a amamentação”.
No domingo, dia 10, a testemunha estava escalada para cuidar das parturientes após o parto e, caso necessário, poderia auxiliar a equipe na sala cirúrgica. Nesta ocasião, na segunda cirurgia das três as quais o anestesista participou, ao ajudar a reposicionar a “placa de bisturi” de uma paciente, percebeu que Giovanni, que estava em pé próximo à cabeça da gestante, estava com o pênis ereto. Neste momento o anestesista “fechou o capote na frente, escondendo a calça”.
A equipe de enfermagem, que tinha suspeitas sobre os abusos, decidiu gravar escondido Giovanni durante o trabalho no centro cirúrgico “sem que ele soubesse que estava sendo filmado”. O grupo então preparou uma sala e deixou um celular gravando. Ao término da cirurgia, ao pegarem de volta o aparelho, assistiram ao vídeo e “se depararam com Giovanni abusando sexualmente da paciente”.
A testemunha então descreveu o que foi registrado em imagens: “Giovanni fica em pé a todo o tempo próximo à cabeça da paciente, e começa o ato durante o parto da paciente e logo após a saída do acompanhante”. Ele aparece mexendo na cabeça da vítima, momento em que “tira o pênis da calça, abre a boca da paciente com as mãos e coloca o pênis na boca” da mulher.
Continuando o relato do abuso, a testemunha salienta que o médico “a todo o tempo tenta disfarçar, olhando monitores” enquanto pratica o estupro. Ele “ainda com o pênis na boca da paciente, ficava empurrando a cabeça da vítima em movimento de “vai e vem”, de forma sutil”. No vídeo, Giovanni ainda parece ter ejaculado na vítima e em seguida limpa o rosto da paciente, limpa o pênis e joga o papel na lixeira”. Em seguida, o anestesista “senta, após se satisfazer”.
Após a equipe recuperar o celular e assistir ao vídeo, acionou outros funcionários que estavam de plantão e relataram o caso e que “não tinha mais estrutura emocional para continuarem atuando”.
Testemunha D
A testemunha trabalha no Hospital da Mulher há mais de dois anos e notou a chegada de Giovanni há cerca de dois meses, tempo em que estiveram em dois ou três plantões. No último deles, no dia 10, ela trabalhou em duas cirurgias em que o anestesista atuou.
Em depoimento, afirma que “Giovanni sempre teve um comportamento arrogante com a equipe”, e que os colegas começaram a desconfiar do médico “devido a seu comportamento durante as cirurgias”, o qual divergia do protocolo: “A paciente entra no leito, onde está toda a equipe — cirurgião, dois obstetras, um anestesista, um pediatra e um técnico de enfermagem —, o anestesista conversa com a paciente e faz a aplicação da anestesia. Após a anestesia, o anestesista se senta e fica monitorando os sinais vitais da paciente através dos monitores eletrônicos”. Giovanni, no entanto, atuava de outra forma.
Segundo relatado pela testemunha, após “o nascimento do bebê, Giovanni solicita a saída do acompanhante do leito, diz que a paciente está apresentando quadro de náuseas e faz a aplicação de novas drogas, para “apagar” a paciente. O acompanhante deveria ficar até o final da cirurgia. E paciente com náusea não pode ser sedado, pois existe risco de broncoaspiração no caso de vômito. Após a saída do acompanhante e a sedação completa da paciente, Giovanni diz que a sala está fria e utiliza um “capote cirúrgico” para fazer uma cortina impedindo que a equipe veja a parte superior da paciente. Após a colocação da “cortina”, sem se intimidar com os membros da equipe, Giovanni fica muito próximo da cabeça da paciente, em pé a todo momento”.
A testemunha também relata que uma das funcionárias da equipe “chegou a ver Giovanni com o pênis para fora da calça”. O grupo que suspeitava do médico se reuniu e teve a ideia de filmá-lo numa das cirurgias. Para ser possível fazer as imagens, mudaram a sala da paciente — a terceira do dia, que mais tarde saberiam ter sido vítima de estupro. O centro cirúrgico escolhido foi a sala 3, onde existe um equipamento de cirurgia por vídeo — “carrinho de vídeo” — o qual possui um compartimento fechado por um vidro escurecido, permitindo deixar o celular filmando sem que Giovanni percebesse. Antes a equipe fez testes de gravação para ter certeza de que o plano daria certo.
A testemunha foi considerada a mais calma do grupo e, por isso, escolhida para acompanhar a cirurgia que seria filmada. O médico estuprou a mulher, como foi gravado. Ao terminar o “abuso ejaculando na paciente, o mesmo utilizou material cirúrgico para limpar o sêmen e jogou na lixeira da sala”. A testemunha coletou este material e entregou para a polícia, que passa por análise.
Segundo o depoimento, a equipe de enfermagem se reuniu e decidiu levar o material para a direção do hospital. Em seguida, “Giovanni foi informado que atuaria somente auxiliando outro profissional de anestesia na próxima cirurgia e após esta notícia foi até a copa, onde os profissionais de enfermagem costumam ficar, e perguntou a alguns técnicos e enfermeiros se alguma paciente ou a ouvidoria do hospital tinha feito alguma reclamação”. A delegada Bárbara Lomba e policiais da Deam foram até o hospital, conversaram com as testemunhas e prenderam o médico.
Uma das testemunhas a prestar depoimento na Deam foi o coordenador do serviço de anestesia do Hospital da Mulher. Ele contou que estava em uma festa de família quando percebeu cinco ligações perdidas do diretor da unidade. Ao retornar o contato foi informado para ir até o hospital, “pois havia denúncia grave e precisava afastar um anestesista rápido”. O coordenador e o diretor conversaram por volta das 16h50, momento em que ainda não sabia o que acontecia. A testemunha chegou a ligar para dois anestesistas que estavam de plantão para saber o que se passava na unidade, mas não souberam informar sobre algum problema.