‘Por que sempre volto ao Acre e treino na lama? Para não esquecer de onde vim’, diz Weverton a 3 meses da Copa

Sabe, dezembro é uma época muito chuvosa lá no Acre, terra onde eu nasci. Eu sei disso não só pela minha infância, mas porque até hoje volto lá todo fim de ano. Eu criei uma espécie de ritual para cumprir.

Sempre que a temporada acaba, eu viajo para o Acre e vou até o campo onde eu me tornei goleiro. A história de que a grama não cresce onde o goleiro pisa pode até não ser verdade em uns poucos estádios de elite, mas ali no Acre era só terra, mesmo. Era muito, muito ruim. Eu me ralava muito. Chegava a jogar com três shorts para amortecer a queda.

Mas era o que tinha, sabe? Ou eu fazia o melhor ali, ou não tinha o que fazer. Quando você é moleque, tudo é legal. Cair no chão é legal, saltar para o lado é legal, se jogar é legal… A verdade é que o treino de goleiro é divertido de se ver se você não é goleiro.

Todo fim de ano eu volto àquele campo e treino nele. É verdade, você não leu errado: é naquele campo duro, onde eu me ralava inteiro e jogava com três shorts, que eu começo meu ano. A parte boa é que, como eu ia dizendo, dezembro é chuvoso no Acre. Lama é melhor que a terra dura.

Talvez você esteja se perguntando por que eu faço isso. Se você estivesse lá, eu te responderia sujo de lama: é um mergulho na realidade. É sentir o que o futebol é para muita gente e o que eu vivo hoje é exceção. Eu não quero esquecer isso jamais.

Esse negócio de goleiro começou meio por acaso. Lembro até hoje do dia em que colocaram essa ideia na minha cabeça. O goleiro do nosso time tinha faltado e eu, que era atacante, fui quebrar o galho ali.

Sabe os jogos de várzea aí da sua cidade? Não tem sempre alguém falando com o goleiro ou dando uma água e tal? No Acre era assim. A gente sempre jogava no campinho apertadinho e no meio do jogo um cara que era de um time melhor me convidou para um teste. Um teste como goleiro.

Expliquei que não era goleiro, mas fiquei com aquilo na cabeça. Isso foi no sábado. Quando chegou domingo à noite, eu pensei ‘pô, quer saber? Vou lá’. Ninguém me conhecia como atacante, quem sabe não começam a me conhecer como goleiro? Acho que foi uma aposta acertada.

 

Poucos anos depois, lá estava eu em um ônibus fazendo contagem regressiva para comemorar a virada do ano com outros tantos garotos que tinham o mesmo sonho do futebol. A gente passava o réveillon dentro do ônibus rumo à Copa São Paulo de Futebol Jr, três noites e dois dias de viagem.

A gente parava para o café da manhã, almoço e depois procurava algum posto de gasolina com espaço para fazermos um treinamento antes do jantar. Se tivesse uma graminha do lado do posto, era sorte nossa. Se não, era no concreto mesmo.

Imagina a confusão: ônibus encostava, desciam 40 pessoas, maioria molecada, roupeiro tirando mala com roupa…Aí treinava e ia tomar banho naqueles banheiros de estrada que vocês devem conhecer. Depois, tome 40 toalhas molhadas estendidas nos bancos do ônibus.

Em toda parada eu ligava para minha família e até para uma namoradinha da época. Uma vez, acabei me empolgando nos assuntos, conversei demais e, quando desliguei, cadê o ônibus? Acredita que os caras foram embora e me largaram lá?

Eu pensei: “não é possível isso”. Os caras vão lembrar, né? O time vai ficar sem goleiro? Deu dez minutos e nada. 20 minutos, nada. De repente, um cara do posto notou que eu estava agoniado, pegou um cartão telefônico e ligou no posto policial da rodovia para avisar que tinham deixado alguém para trás.

Meia hora depois, os caras voltaram. Eu entrei no ônibus e tomei vaia! Haha! Pô, ninguém lembrou de mim? Eu não faço diferença? Tudo bem chegar sem goleiro na Copinha, então? (risos)

Todo ano surgem histórias como essa na Copinha. Eu vivi uma delas. Sou mais um desses sonhadores.

A verdade é que todo mundo que estava naquele ônibus sabia que aquela era a chance da vida. Naquele ano, o Corinthians estava na nossa chave e o cansaço da viagem virava detalhe. A gente só pensava em jogar muito e chamar atenção de alguém. Naquele ano, eu consegui.

A alegria foi muito grande quando eu soube que o Corinthians queria me contratar. Voltei para o Acre enquanto a Copinha terminava e me apresentei em fevereiro. Eu pensava: “Caraca, vou para um time grande, vou ter minha chance”. Só que nada aconteceu do jeito que eu esperava.

Eu gosto de falar disso porque poucos falam. Falar do momento atual é fácil, mas é bom lembrar o que me trouxe até aqui. Primeiramente, eu vou dizer que foi a vontade de Deus. Quando eu cheguei na base do Corinthians, eu não sabia cair direito, eu não sabia pegar a bola 100%… Por quê? Eu tive três anos de preparação desde que deixei de ser atacante para me tornar goleiro.

Hoje, a base começa com 12 anos. Antes, até. Imagina eu, que virei goleiro com 15 anos e sem nenhuma estrutura, querer competir com esses caras?

Além da questão profissional, tinha o aspecto do garoto do Acre morando em São Paulo. Quando eu pisei aqui, vi o tamanho da cidade, cheguei em Itaquera e vi aquela loucura, a primeira coisa que eu pensei quando entrei no alojamento foi: cadê minha família? Me bateu um desespero e eu chorava todo dia. Eu não queria ficar ali. Começou a me dar muita saudade. Ficava tudo bem entre segunda e sexta-feira, mas o fim de semana era sempre um problema. Todo mundo morava perto, ia embora e o alojamento ficava vazio. E aí batia o desespero.

Na segunda semana, eu pensei que não ia aguentar. Peguei minhas coisas, falei que iria para casa da minha tia e não ia voltar mais. Estava decidido a ir embora. Cheguei a dizer que não queria mais jogar futebol. Neste dia, recebi a resposta que me colocou no chão novamente: “Você está louco? Você sabe a chance que você está tendo? Sabe quantas pessoas queriam estar aí?” Voltei ao alojamento.

Em campo, eu via os outros treinando e não sabia fazer o que eles faziam. Quantas vezes o treinador de goleiros não parou o treino e me mandou embora porque eu não conseguia fazer nada direito?

Só que eu não podia voltar para trás. Era a chance da minha vida. Eu chegava no quarto, à noite, depois do treino, jogava o colchão no chão e treinava sozinho. Madrugada adentro, eu fazia tudo que ele mandava durante os treinamentos. Passava horas me jogando no colchão. E foi assim que eu deixei de ser o goleiro que não conseguia fazer as coisas para me tornar um goleiro que aprendia tudo muito rápido.

Depois desses episódios, tudo começou a dar certo até quando tive a chance de subir ao profissional. Em 2008, o Corinthians já tinha sido campeão da Série B e deu férias ao Julio Cesar e ao Felipe. Ficamos eu e o Rafael.

Neste momento, eu achei que teria minha oportunidade, mas eles preferiram colocar o Rafael, que era dois ou três anos mais novo que eu. Foi aí que eu entendi: se o cara mais jovem está na minha frente, é porque o treinador me descartou. Era hora de pegar minhas coisas e sair.

Dali em diante, passei por Oeste, Paulista, América-RN e Botafogo-SP até chegar na Portuguesa. Na época, a equipe ficou conhecida como Barcelusa. O destaque ali me fez ser visto pelo Athletico-PR. Todos sabem a história a partir dali, mas olha o tanto de coisas que eu passei para chegar até aquele momento? Eu dei uma raladinha para chegar nesse nível, né?

No Athletico, eu me firmei, fui campeão olímpico com a seleção brasileira e me tornei um dos jogadores mais convocados pelo Tite em terras nacionais. Desde então, eu tinha o desejo no meu coração de ter uma oportunidade no grande cenário e ela veio em 2018.

Estávamos à beira da Copa do Mundo e eu pensei que se jogasse bem o Paulistão tinha uma chance de ser convocado. Mas, assim como no meu início lá no Corinthians, aconteceu tudo ao contrário.

Eu não virei titular, não joguei. Pelo contrário, virei terceiro goleiro. Eu sabia que a situação era difícil com o Prass e o Jailson, jogadores tão identificados com a torcida que minha contratação não foi unanimidade. Os palmeirenses não viam necessidade de mais um goleiro.

Claro que, como competidor, você fica chateado. Eu já tinha mais de 350 jogos na carreira, seis temporadas jogando. Mas eu não iria desistir. Eu precisava buscar meu espaço. Durante esse tempo, eu aproveitei para conhecer melhor o Palmeiras. Ali fora, você vê muito mais do que quando você está lá dentro. Vi o ambiente, entendi a exigência da torcida, o comportamento da arquibancada… Foi uma aula para quando chegasse a minha vez.

Mas só a teoria não adiantaria não fosse um esforço na parte física também. No Palmeiras, eu precisei mudar algumas questões que pra mim não faziam diferença até aquele momento: questão de peso, de corpo de atleta, de me ver como atleta fisicamente.

Depois daqueles jogos em que eu ia para o banco estudar o ambiente e não entrava em campo, eu chegava no hotel e ia para a academia. 1h30 da manhã e eu treinando. Era necessário. Paguei um preço alto para encontrar meu espaço no clube, mas uma hora chegou o tempo de aproveitar.

E por falar em aproveitar, eu tive a felicidade de comemorar muitos títulos com a camisa do Palmeiras e sempre faço questão de vestir a bandeira do Acre nesses momentos de alegria. É uma mensagem, sabe? Quando eu coloco a bandeira no meu corpo para comemorar é para mostrar que se eu saí de lá e fui capaz, você também é capaz.

É importante porque não é todo dia que você encontra alguém que saiu do Acre e chegou aonde eu cheguei. Tenho muito orgulho porque sei o quanto é difícil.

As pessoas se limitam muito, sabe? Se limitam porque nasceram no Norte do país. Dizem que não tem chance, que é longe, mas não é verdade. Se você tiver coragem, persistência, trabalhar muito e acreditar, há oportunidade para todo mundo. É essa a mensagem que eu quero passar.

As pessoas falam que eu tive um bom empresário, mas não é assim. Eu tenho Deus primeiramente e depois meu trabalho, minha luta, o preço diário que eu pago. Fiz muitas renúncias. Nunca gostei de festa, de balada, de beber, porque acho que isso não combina com a carreira que eu escolhi. Para você ter uma coisa, perde a outra.

Quem sabe a bandeira do Acre não se faz presente também no Qatar, né? Jogar pela seleção já é um sonho, uma Copa do Mundo então…

 

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